Alexandre Nero: “A gente não faz a música que o mercado fonográfico quer” 03/05/2022 - 10:04

Beto Pacheco

 

“Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto”, o quarto álbum de Alexandre Nero, é um disco triste. Detalhe: ele o queria assim. E isso quem diz não sou eu, mas o próprio autor. Triste e além: “A gente (Nero; Antônio Saraiva, produtor do disco; e o Fato, grupo que cita por ter feito parte no início da carreira) não faz a música que o mercado fonográfico quer, a gente faz a nossa música”, comentou o ator e músico curitibano, quando me concedeu entrevista para o programa ‘É de Curitiba’, há duas semanas. Para ele, “O mercado não está nem aí pra gente. Então, para fazer as pessoas chegarem até a nossa música, é uma batalha. Um garimpo. É artesanal!”.

Ousadia que pode se tornar um dilema em relação à própria vontade de se fazer ouvir. Afinal, quantos ouvintes estão preparados para mergulhar profundamente em um trabalho cuja reflexão e crítica às mazelas sociais, à política, aos preconceitos e aos paradigmas são os principais objetivos? Mais: projeto que busca conceitos estéticos não rotineiros. Nero tenta responder - ou se convencer - citando Gilberto Gil: “O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”. 

Nos dias atuais, isso talvez seja possível para alguém que conquistou o caminho ao grande público. Mas será isso simples também àqueles que não têm “Comendador” como preâmbulo? Creio que não. Nem mesmo para ele, que busca abrir picada em terreno tortuoso, desenhando o próprio mapa, em vez de se acomodar seguindo em pista asfaltada com o GPS do “mercado”. Desse modo, tampouco será fácil conquistar um número considerável de ouvintes propensos a uma segunda audição. 

Não é um álbum para pessoas cômodas, definitivamente. 

 

Aldir Blanc virulento 

Incômodo onipresente, mesmo em um disco cuja abertura apresenta uma “carteirada” difícil de se contestar. Afinal, a canção “Virulência” - cujo clipe foi lançado nesta terça, 03 (veja abaixo) - tem letra de Aldir Blanc, em parceria com Nero e Saraiva. Ela foi escrita envolta em rancor e tristeza, mas repartida com generosidade. “A letra chegou enviada por Aldir muito pesada. Agressiva. Desesperançosa. Ele estava muito magoado com toda essa situação do país, caminhando para esse lugar terrível. Esse abismo que estamos carregando, com pessoas batendo palmas para ditadura”, confessou Nero. Com coragem e delicadeza, ele falou a Aldir que a composição não cabia, originalmente, no argumento do disco. Porque, apesar dos lamentos, ele visava um tom de “luz no fim do túnel”. Como resposta, Nero recebeu um singelo e fácil “vamos alterar então”. Bom, se a versão da música que ouvimos agora é a amenizada, a letra primária deveria ser a cena final de um filme de Tarantino. 

Nela, o autor de “O bêbado e a equilibrista” e “Linha de Passe”, escritor de crônicas para o Pasquim, O Globo, Jornal do Brasil e combatente ferrenho da tirania, vomita angústias. Tece um pedido de socorro em meio à pandemia. “Que falta me faz meus pais. Que falta nos faz a paz. Que falta nos faz um país”, alertava o gênio carioca que, para lamento do Brasil, não se fez ouvir a tempo e tombou perante o coronavírus - ainda quando não havia vacinas disponíveis, mas em período em que já se manifestavam os negacionistas, vassalos do terror.

 

Silêncio em música

Na sequência, chega “Meu bloco taí” (Nero/Leprevost/Fukushima/Petermann), que trata do silêncio. “A gente tem medo do silêncio. O silêncio numa conversa é constrangedor”, avalia Nero. Não se pode dizer de início, ao ouvi-la, que seja um samba-canção, pois ela apresenta uma cadência superlativa, quase o surdo numa marcha fúnebre. Um bloco efêmero, que sai durante o silêncio do breque, da “paradinha” da bateria. Uma clara provocação, ainda mais no país da Sapucaí, da Timbalada e do Galo da Madrugada. É o contestar incômodo sobre o que se canonizou inquestionável, pois, neste país solar e de pessoas obrigatoriamente alegres, ela nos faz rememorar “Deixa o verão” (pra mais tarde), cantada há duas décadas pelos Los Hermanos.   

Fico, neste ínterim, a me perguntar o quanto este silêncio, sobre o qual mal paro para pensar em meu mundano dia, deve ser caro a alguém como Alexandre Nero. Nove novelas, quatro séries e 12 filmes depois, que lhe conferiram satisfação e sucesso imensos, são também ingredientes para uma vida que se vê cercada de assédio e julgamentos. “Meu reino por um minuto de silêncio”, bradaria o ator, estivesse interpretando Ricardo III. 

 

Ode à tristeza

Esta linha perpassa o álbum e está explícita a valer na terceira música: “Beleza na Tristeza” (Nero/Leprevost). A essa altura eu já percebia que aquele Nero das noites curitibanas, que soltava a voz com pressão, para agitar as plateias da banda Maquinaíma, na Aoca Bar, e da Denorex 80, onde a loucura fizesse par, definitivamente não se mostraria. E se se mostrasse, seria apenas pontualmente. “Aprendi a parar de gritar um pouco”, brinca o cantor que, não precisando mais ser um “sobrevivente da música”, como fez anos a fio, pois fazer dançar os espectadores era o seu ganha-pão, toca “pequeno” o violão para ninar o filho ou se ouvir de perto, de dentro do peito.  

Curioso, pois essa pequenez (no bom sentido) anda de mãos dadas à grandiosidade dos arranjos do disco, entoados pela Orquestra Filarmônica de São Petersburgo, a mais antiga em atividade na Rússia.

 

Divinas e eternas vozes

Nas obras “Em guerra de cegos” e Miseráveis, que contam com as presenças, respectivamente, de Milton Nascimento e Elza Soares, “duas das maiores vozes do planeta”, como Nero faz questão de enaltecer (com razão), o cuidado para que as participações soem como tributos, registros para a posteridade, e não que pareçam como se a usura se fizesse presente. “Não quisemos colocá-los em músicas de trabalho ou num clipe. Era uma homenagem, não era para me promover”. Funcionou. Mesmo que o cantar de Milton, um pouco vacilante aos quase 80 anos (26 de outubro), nos deixe com desejo de lhe acolher e acarinhar sua imensa história e talento. 

 

De pai para filhos

Em “A partícula" (Nero/João Cavalcanti), uma elucubração sobre a paternidade. “Para o bem e para o mal, ter filho é padecer no paraíso”, desabafa o autor. Esta é uma das composições mais bem acabadas, pela fluidez do arranjo, cordas, violão, e força da melodia. Contraponto, talvez, a um dos aspectos mais frágeis deste trabalho como um todo, que fica na limítrofe fronteira entre o elaborado e o presunçoso; o profundo e o prolixo. Ora, ingredientes inerentes à ousadia, convenhamos.

Segundo o compositor, a intenção com o álbum foi justamente "encurtar o caminho do popular para o dito erudito''. Mas ele completa explicando que o fez pensando “não no sentido arrogante da palavra, mas tentando enaltecer o lado culto do criar”. Neste ponto, infelizmente, tenho lá minhas dúvidas sobre qual parcela da população tem ouvidos apurados para alcançar este repertório.  

 

Prece profana

Amém à balada “Nossa Senhora de Copacabana” (Nero/Leprevost). Um frescor. Um jogo de palavras - a praia mundialmente conhecida, a avenida famosa e fotografia da realidade, o(a)s marginalizado(a)s, o olhar moralista - que serve de oração àqueles que, via de regra, não se enquadram nas preces dos que se autointitulam, corrozivamente, “pessoas de bem”. Excluídos, orai por nós.  

A cartela é completada ainda com canções que falam de pobreza, de (mau) poder, de natureza, de esperança, de resiliência, de vida e de morte. Início, meio e fim. 

 

O retorno

Por falar em início, mesmo que por fim, “Lajedo do Sertão” (Nero) foi a fagulha inicial, que o fez ter vontade novamente de produzir um disco de inéditas. Ela foi feita enquanto o artista se encontrava em “retiro”, gravando uma série para a Rede Globo, entre 2017 e 2018, na região de Lajedo do Pai Mateus - município de Cabaceiras, no estado da Paraíba . Foi um período difícil para Nero, psicologicamente falando, longo, distante de tudo e há anos sem compor. O reencontro com o violão rendeu uma canção cujo canto segue a melodia à risca e é baseada na “calmaria, contemplação e intimismo”,  palavras que foram carregadas para elaborar “um disco sem euforia, sem agito”. 

“Eu queria confrontar esse mercado fonográfico, onde tudo é pra cima, alegre, feliz, up”. Enfim, se este era o objetivo, acertou no alvo. Agora, se o público irá - em quantidade e qualidade - vibrar na mesma ressonância, o tempo dirá. Beleza não faltou. Mesmo que esta tenha sido o espelho da tristeza.

 

Você sabe como Aldir Blanc se portou ao ter que mostrar sua intocável biblioteca particular? Ou como reagiu Roberto Carlos quando Nero apareceu para cantar com ele vestindo sapatos marrons? Ouça o 'É de Curitiba' com Alexandre Nero para descobrir: