Aos 76, Alceu Valença e suas musas são belezas para todas as horas 01/07/2022 - 10:26

Beto Pacheco

Segundo a mitologia grega, após a vitória dos deuses do Olimpo sobre os seis filhos de Urano, conhecidos como titãs, foi solicitado a Zeus que se criassem divindades capazes de cantar tal vitória e perpetuar a glória. Zeus, então, deitou-se (com o perdão ao eufemismo, afinal, com ele era na base do raio) com Mnemósine - a deusa da memória - durante dez noites consecutivas (crível, afinal, era Zeus) e ela deu à luz nove filhas: as musas. Entidades às quais eram atribuídas a capacidade de inspirar a criação artística e científica.

O termo “musa” acabou por se perpetuar como sendo o gênio que inspira os artistas. Contudo, muitas vezes o “objeto” se confunde com a “divindade”. E aí o sopro de inspiração se torna carne e osso. Na música, muitas vezes, traduz-se “musa” como sendo o ser amado, desejado, admirado (mesmo que de forma platônica). Basta um “googlada” para se saber, por exemplo, quem “provocou” Tom e Vinícius a escreverem a olímpica "Garota de Ipanema".

E se uma musa, na hora e lugares certos, pode gerar obras-primas - e às vezes confusões - , imagine três. Alceu Valença, nascido há 76 anos em São Bento do Una, agreste de Pernambuco, fez uma mistureba lascada para criar - o que levou quase duas décadas - uma das suas canções que virou clássico: “La Belle de Jour”. História que junta uma bailarina dançando na praia de Boa Viagem, e as atrizes Jacqueline Bisset e Catherine Deneuve. Haja fôlego… Talvez nem Zeus.

Conta Alceu, em um vídeo no seu canal no YouTube, que, durante uma passagem pelo apartamento de seus pais, em Recife, ele olhou pela janela e teve uma visão peculiar. “Eu vi uma moça dançando balé clássico na beira da praia. Era um dia de céu muito azul. Foi algo surreal e aquilo ficou na minha cabeça”. 

Eu lembro da moça bonita

Da praia de Boa Viagem

Em outra entrevista, para a repórter Joana Oliveira no El País, o músico aquece o relato: “dois dias depois, no pátio da Ladeira da Misericórdia, em Olinda, encontrei Paulinho Rafael [instrumentista de sua banda] tocando violão. Começamos a tocar juntos e, de repente, aparece uma moça com o cabelo pintado de lilás e o rosto coberto de purpurina. Ela passou, deu uma rodopiada, e foi embora no meio da escuridão. Aí eu digo: ‘Essa é a mensageira dos anjos! Que loucura!’” 

Ele dá a entender que seria essa moça a mesma daquela, na praia. E “Mensageira dos Anjos” se tornou outra das músicas que ele compôs na década de 1970.

A mensageira dos anjos

Com seu cabelo lilás

A musa bailarina-carnavalesca ainda inspirou uma terceira canção (qual das três escolheria no Fantástico?). Quer dizer, se não toda, ao menos um pedaço de uma composição feita em grande encontro, com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho: Táxi Lunar (1979).

“Quando (Geraldo) me mostrou, alguns anos depois no Rio de Janeiro, a música que estava fazendo, escrevi esses versos: ‘pela sua cabeleira vermelha, pelos raios desse sol, lilás, pelo fogo do seu corpo, centelha, pelo raio desse sol. Tem espelho no seu rosto de neve — lembrei da purpurina no rosto dela —, nem menina, nem mulher’.”

La Belle De Jour (nome a uma flor, pasme, lilás) foi feita muitos anos depois daquela tarde de domingo em que ele viu, da janela de seus pais, a moça fazendo um pas de bourrée. Lançada em 1992, foi composta em virtude de uma passagem por Paris, quando o pernambucano participou de um festival. Naqueles dias, Alceu conta que estava em um bar na capital francesa e encontrou, ao acaso, com a atriz inglesa Jacqueline Bisset. Ela pediu que ele lhe escrevesse um poema. Na hora de compor, o autor a confundiu com a francesa Catherine Deneuve, atriz do filme “Belle De Jour” (1967, do espanhol Luis Buñuel), que em português era apresentado como “A Bela da Tarde”. Pois é, só as musas, as do Olimpo, para azeitar tamanha viagem. 

Nos últimos anos, Alceu Valença tem sido “redescoberto” por ouvidos mais jovens, por meio de remixes de suas músicas. Eu, particularmente, jogaria raios e trovões sobre tal heresia. O deus das brumas leves, por sua vez, é um pouco mais ameno ao comentar a novidade (que ganhou ventos após tocar em uma festa do BBB, em 2021). “Existe até música dos Beatles tocada como chorinho. Eu amo chorinho, mas prefiro a música dos Beatles mais do jeito deles. Beatles como chorinho fica meio a pulso [forçado], né?”, afirma naquele papo com o El País. Voto, pulsante, com o relator. 

Assisti ao criador de Anunciação, Morena Tropicana, Coração Bobo, entre tantas lindezas mais, há alguns anos, na Ópera de Arame, em Curitiba. Levei meus pais ao show na doce ilusão de ser algo mais “tranquilo”, teatro, cadeiras e tais. Alceu entrou fervendo, com seu charme, seu sorriso largo, cantando e pulando.

Bicho maluco beleza do Largo do Amparo

Teu estandarte tão raro, Bajado criou

Todos os espectadores saltaram, aplaudiram, vibraram e não mais se sentaram. Nem meus pais. Foi um carnaval com direito ao maestro Waltel Branco na plateia (o músico parnanguara foi o arranjador do primeiro disco solo de Alceu, “Molhado de Suor”, de 1974). Fato celebrado no palco naquele dia. 

Bom, tomara que ele siga, seja em São Bento do Una, Recife, Rio de Janeiro, Paris, Curitiba ou no Olimpo, sendo esse titã da arte brasileira, descendente em música de outros deuses, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Siga em seu modo andarilho de contagiar, tendo o canto como encanto, para ajudar a alinhavar nosso tecido social com sua poesia, em busca de um futuro no qual não seja necessário se pegar táxi para uma estação lunar.

Tomara meu Deus, tomara

Uma nação solidária

Sem preconceitos, tomara

Uma nação como nós

Viva Alceu Valença!