“The Batman” é realista e contemporâneo, mas se esgota em sua longa duração 15/03/2022 - 17:36

Beto Pacheco

Não ia a uma sala de cinema há mais de dois anos. A última visita: “Era Uma Vez Em... Hollywood”, de Quentin Tarantino, em 2019. Então, após todo esse tempo pandêmico, queria voltar em grande estilo. Modo blockbuster, por que não? Tela gigante, o combo pipoca e refrigerante para bilionários, e aquele Dolby Surround 7.1 ecoando em três dimensões. O filme: “The Batman”, o novo, dirigido por Matt Reeves e roteirizado por ele em parceria com Peter Craig.

A sala escolhida foi dessas com tela gigante, numa quarta-feira, para acalmar o bolso - em geral, tem promoções neste dia da semana: paguei R$ 22 a inteira, o equivalente a quase três litros de gasolina, nosso novo parâmetro de medida. Quanto à pipoca e refri, nada feito. Precisava garantir o combustível de retorno. A tática foi comprar um salgadinho numa lojinha adjacente (fica a dia).

Mas vamos ao filme. É evidente a homenagem aos clássicos do cinema noir dos anos 1940/1950. A narrativa embrutecida, lúgubre e soturna no início, enquanto as câmeras perambulam por uma Gotham City que poderia muito bem ser o centro de uma grande capital mundo afora, deixa isso evidente. Bons exemplos, mais moderninhos desse formato, são “Sin City” (2005), de Robert Rodriguez e Frank Miller, e “Dick Tracy” (1990), de Warren Beatty, baseado nos quadrinhos homônimos. Essa referência também reaparece nos encontros, além da conta, talvez, repletos de tensão sexual entre o Homem-Morcego (Robert Pattinson) e a femme fatale Mulher Gato (Zoë Kravitz) – personagem que ao longo de sua trajetória sempre foi dúbia, mas neste em especial está claramente mais para o lado claro da Luz - redundância essa de outra história, de uma galáxia mais distante.

Em “The Batman”, Reeves também faz alusão (quase explícita) a David Fincher e seus serial killers memoráveis dos filmes “Seven” e “Zodíaco”. O que é perfeitamente compreensível. Afinal, um “Charada serial killer” era bola que estava a quicar para ser chutada há tempos (Paul Dano está ótimo no papel, registre-se, mas longe de ser um John Doe, de Kevin Spacey). Funciona bem, principalmente pela forma realista e crua com que é apresentado. O atual Charada é um personagem que existe, está entre nós. O diretor opta por colocá-lo (SPOILER ALERT) como integrante/líder de um grupo fundamentalista armamentista que age na profunda dark web. Nada mais contemporâneo e real. Isso sim é assustador.

Pé no chão
O realismo é uma marca deste filme, como já vimos em “O Cavaleiro das Trevas” (Christopher Nolan), “Logan” (James Mangold) e “Coringa” (Todd Phillips). Em “The Batman”, os personagens estão com o pé no mundo e suas vidas e personalidades refletem de forma verídica uma sociedade quebrada, corrupta, nociva, violenta e individualista. Qualquer semelhança…

Contudo, essa mesma realidade pode ser o calcanhar de aquiles do roteiro. Todos os vilões são críveis e surgem parcamente iluminados por letreiros neon em uma noite chuvosa. Edward Nashton, o Coringa (Dano); Carmine Falcone (John Turturro em um papel que vale um perfil psicológico à parte); Oz, o Pinguim (Colin Farrell, irreconhecível) desempenham muito bem. Sabemos que nesses universos, por vezes, apresentar um personagem é apenas um trampolim para sequências vindouras. Do lado dos “mocinhos”, nas cenas de crimes, idem. O tenente Jim Gordon (um pouco apático, talvez reflexo do estilo do próprio ator, Jeffrey Wright) e toda a tropa de policiais e CSIs em seu entorno - dos corretos aos incorretos, pois sempre há - estão em seus devidos lugares.

Pois é quando entra em cena, nessa tela de “A vida como ela é”, um homem de capa e cinto de múltiplas utilidades. Sim, esse é o personagem, sempre foi. Um arquétipo indiscutível, e reconhecível, de crianças a tiozões. Mas algo parecia fora de sintonia. Aquela capa não cai bem sobre um Batman que, neste caso, está mais para um Sherlock Holmes ou um Hercule Poirot.

A solução: existe tecnologia suficiente neste cenário (SPOILER). A literal lente de contato fotográfica está lá presente, a fim de que o próprio Gordon faça a linha de frente das investigações para um Batman que se mantém no mundo imaginário, imprimindo medo, recebendo dados e fazendo sua busca nas sombras. Ao vir para a rua e se mostrar sob os holofotes (como o faz ao bater à porta do clube dos marginais… e quando digo marginais, estou falando do alto escalão) ele se coloca em contraponto à intenção dos próprios roteiristas.

Luz no beco
Em se tratando de ação, inclusive, “The Batman” é um caso à parte. Com cenas que, arrisco dizer, entrarão para a lista de grandes momentos do cinema-ação - a exemplo do estalar de dedos de Thanos; a mágica do sumiço do lápis, “ta-nan!”, realizada à maestria pelo Coringa de Heath Ledger; e o primeiro beijo de “Miranha” (os brasileiros não respeitam nada mesmo…) com Mary Jane. Em “The Batman”, a cena de Oz, dentro de um carro capotado, sob chuva torrencial, vendo nosso herói sair de ponta-cabeça em meio às chamas, tem potencial para ser lembrada. Outra é a luta contra os capangas da máfia em um corredor escuro, iluminado apenas pelas rajadas de metralhadora. Um espetáculo. Até a primeira aparição do Batmóvel é digna de memória.

Porém, talvez um corte aqui, outro acolá, desse um ritmo melhor ao longa. “The Batman” nos deixa um pouco esgotados quando soa o gongo. Um pouco menos daqueles olhares, regados à trilha romântica, entre o Morcego e a Mulher-Gato, já resolveria uns 20 minutos de película. O amor é importante? Óbvio! Afinal, sem ter a quem querer bem, qual o combustível para lutar por um mundo melhor? Mas os espectadores são perfeitamente capazes de entender a relação já na primeira cena entre ambos, e vida que segue.

O vampiro virou morcego
Por fim, vamos falar de Robert Pattinson. Sua atuação é honesta (gosto desses adjetivos-subjetivos nos moldes sommelier). O que mais chama a atenção em seu Bruce Wayne é que ele é construído, talvez, como aquele, entre todos os Bruces, que menos se distancia do seu alter ego. Em filmes anteriores, Bruce, mesmo que adoecido por dentro, mantém a pose de bilionário playboy rodeado por mulheres, o prestigioso cidadão de Gotham City. Lembre-se de Christian Bale em seu pseudo-disfarce, por exemplo. Contudo, nesta nova versão, a personalidade, com ou sem máscara, é a mesma: down. E de franjinha emo bem cortada.

Com tantas voltas e reviravoltas, o filme esbarra numa narrativa prolixa, algumas vezes expositiva demais, com personagens explicando o roteiro em monólogos. E tem aquele final um pouco clichê do vilão que quer “lavar a cidade” para construir uma nova Gotham. Por outro lado, a ideia de trazer temas contemporâneos, contornos de realidade no enredo dos crimes, na construção da psicologia da cidade, e a forma brutal como o diretor guia as cenas de ação, fazem dele um dos melhores exemplares a contar a história desse personagem icônico. O “Cavaleiro das Trevas”, entretanto, ainda não o vê no retrovisor.