Com nove indicações ao Oscar, “Os Banshees de Inisherin” faz do irrisório uma jornada pelos dilemas humanos 26/01/2023 - 14:40

Beto Pacheco

Banshees são entes fantásticos da mitologia celta. Seres que, rezam as lendas, eram capazes de prever a morte e se apresentavam vestidos com capa e capuz. Apesar do título, o longa-metragem Os Banshees de Inisherin (roteiro e direção de Martin McDonagh) não é especificamente sobre esses personagens mitológicos, apesar de eles estarem lá representados na pele de Mrs. McCormick (Sheila Flitton), e, sim, sobre aquilo que os precede e, por vezes, leva à morte: as relações humanas e suas degradações. Contudo, não há apenas tristeza ali presente. Pitadas de humor, que vão do breve sorriso à gargalhada, servem aos alívios cômicos. De toda sorte, é o lado sombrio que instiga o desejo de se fazer a obra. Ao menos é o que afirmou McDonagh em entrevista ao jornal britânico The Guardian. "É engraçado… mas é triste. E ninguém mais tenta fazer filmes tristes". Os Banshees de Inisherin estreia nos cinemas de Curitiba no dia 02 de fevereiro, quinta-feira.

Na trama, Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell) e Colm Doherty (Brendan Gleeson) são amigos de longa data e vivem em uma ilha na costa da Irlanda. Um local opressivo, entediante, com seus moradores sempre subjugados sob os olhos de uma imagem religiosa, envoltos em bruma, sem muitas distrações - à exceção do clássico bar - e propícios à solidão e aos pensamentos soturnos. Neste pedaço de terra cercado de água e tensão, de onde se pode, à distância, ver o continente e ouvir as bombas da Guerra Civil Irlandesa - o que situa a passagem entre 1922 e 1923 - um dos velhos amigos, Colm, decide, sem aviso prévio, que não quer mais falar com o outro. 

Ação simples, cujo motivo é explicado no decorrer, que desencadeia uma série de acontecimentos que, subvertendo a fotografia bucólica (Ben Davis), escalam assustadoramente em intensidade, caos e gravidade. McDonagh desenha seus personagens principais de tal modo que, de início, tendemos a simpatizar com um deles, Pádraic, o gentil e simplório, e desgostar do outro, Colm, rabugento e erudito. Arquétipos que são revirados e desconstruídos com pinça, cena a cena. Não que, ao final, haja uma reviravolta absoluta entre eles. Longe disso. São tantas as discussões possíveis dentro do desenrolar do enredo - solidão, violência, depressão, relacionamentos abusivos, a massacrante rotina, os padrões sociais, a velhice, a finitude da vida e os dilemas existenciais, os aspectos da arte… - que só há uma cor possível para os traços das personalidades representadas: o cinza, em todos os tons irlandeses.    

Uma história aparentemente irrisória, iniciada por um amigo que deixa de falar com o outro, mas que, da forma como é desenvolvida, comporta incontáveis e dolorosos conflitos humanos. O problema (sempre há um) se dá em virtude de o preterido, vivido por Farrell, não aceitar a situação e tentar reaver o amigo a qualquer custo, ignorando os avisos dados, as ameaças contundentes e flertando com um perigoso blefe (ou não). Contudo, McDonagh não a dirige de forma óbvia. Ele faz com que nos perguntemos a todo momento: Pádraic o faz por que teria um coração maior que si ou por que tal atitude de Colm o está jogando em uma nuvem de dúvidas no seu modo de ser, atingindo-o com sentimentos depressivos, por vezes raivosos, com os quais nunca precisou se confrontar? A falta de instrução e de repertório de mundo, desenhada no personagem, também colabora. Do outro lado, Colm toma tal atitude, se isolar do ex-amigo, por uma aflição que pode ser vista como mesquinha ou compreensível. Tudo depende do ângulo em que o espectador, com seus próprios dilemas e repertórios, observa.

Esse embate filosófico (não se deixe levar pelo tom pejorativo da palavra, leitor) fica ainda mais brilhante pelos personagens secundários, a irmã de Pádraic, Siobhan (Kerry Condon), intelectual, protetora do irmão e com, ainda, uma sopro de esperança no futuro, e o filho do policial da cidade, Dominic (Barry Keoghan), um ser ainda mais limitado e ignorante que o próprio protagonista, reflexo em grande parte dos abusos e violências que sofreu. Ambos apresentam outras camadas de dilemas - o abuso, o abandono, a violência explícita, a banalidade em que vivem, a falta de sonhos… - que, casados com os personagens principais, elaboram um verdadeiro caleidoscópio das angústias humanas. 

O longa se posiciona como uma tragicomédia, a ponto de ter ganhado o Globo de Ouro 2023 de “Melhor Filme - Comédia/Musical”. Sim, há momentos engraçados, um humor mordaz, que nos arranca risos de instantes melancólicos ou trágicos (algo de certa forma desconcertante) por vezes representados na expressão corporal e no olhar. Mais uma das coisas a se louvar na direção, que está entre as nove indicações do trabalho ao Oscar 2023. São elas: Melhor Filme; Direção (McDonagh); Ator (Farrell); duas na categoria Ator Coadjuvante (Gleeson e Keoghan); Atriz Coadjuvante (Condon); Roteiro Original (McDonagh); Edição (E.G. Nielsen); e Trilha Sonora (Burwell). 

Em suma, não há como, seja durante ou após a sessão, o espectador sair sem refletir sobre alguma situação de sua vida ou em alguém que tenha passado por algo que, guardadas as devidas proporções - e mutilações, não seja de algum modo representado na história.

 

Veja o trailer do filme: