Conheça as mães que acolhem crianças e adolescentes cujos direitos foram violados 06/05/2022 - 16:10

"O amor materno é a mais elevada forma de altruísmo", escreveu Machado de Assis e, "em coração de mãe, sempre cabe mais um", diz o ditado. E num caso específico esse amor não só ganha um reforço em seu caráter altruísta, mas também está constantemente se renovando, inclusive, em relação ao seu objeto, ao sujeito amado. São as mães provisórias, que acolhem temporariamente em suas famílias crianças e adolescentes afastados judicialmente de seus responsáveis ou deixados por seus pais biológicos para a adoção.

Em Curitiba, segundo informações da Fundação de Ação Social (FAS), há atualmente 25 famílias habilitadas e 22 crianças e adolescentes acolhidos no âmbito do programa "Acolhimento Familiar", na modalidade de família acolhedora. São famílias capacitadas pelas organizações sociais Acridas e Recriar para receber meninos e meninas que, não raro, sofreram algum tipo de violação de direitos (como negligência, abandono e violências física, psicológica e sexual) e agora aguardam uma decisão judicial sobre seus futuros: se seguirão para adoção ou voltarão para o antigo lar.

O principal objetivo do programa, explica Tatiana Possa, diretora de proteção social especial da FAS, é possibilitar que crianças e adolescentes afastados protetivamente de seus parentes possam manter o vínculo familiar e a convivência comunitária, sendo acolhidos individualmente no seio da família acolhedora.

Quando não há essa possibilidade de acolhimento, eles são encaminhados para instituições próprias ou parceiras do município, onde conviverão com dezenas de outras crianças e serão cuidadas por profissionais. Em Curitiba, existem aproximadamente 500 crianças e adolescentes acolhidos em instituições.

 

"Não podemos esperar que Deus faça tudo"

Aos 53 anos, a aposentada Angela Rosemarie da Costa celebrará no próximo final de semana o Dia das Mães ao lado de sua progenitora, de sua filha Julia, de seu irmão e de uma criança de apenas três meses e meio. Ela cuida do bebê desde quando ele tinha apenas 13 dias de vida, após ser deixado pela mãe biológica para a adoção. Habilitada pela Recriar, ela conta que sempre gostou de lidar com criança e pedia a Deus que ajudasse, protegesse os pequenos. Quando conheceu o programa de acolhimento familiar, decidiu que era hora de 'colocar a mão na massa' também . "Não podemos esperar que Deus faça tudo", justifica.

No ano passado acolheu sua primeira criança, um menino de três anos que chegou em maio na sua casa e lá permaneceu até dezembro. Vítima de negligência, o menino já carregava alguns traumas e, quando chegou, ficou um pouco assustado diante de tantas novidades, tantos rostos novos. Aos poucos, porém, foi se acostumando e criando laços mais fortes com a família, até que passou a considerar a nova casa o seu lar também. "Cria um laço forte, não tem como não se apegar. Quando eles chegam ainda estão assustadinhos, tudo é novo. Depois, vira de casa. É muito legal", diz Angela.

Quando a família já se preparava para a festa de Natal, no dia 23 de dezembro veio uma notícia inesperada: o juiz que cuidava do caso do garoto havia autorizado seu retorno para a família de origem e ele passaria a viver com uma tia. Naquele mesmo dia o menino iria embora.

"Na hora de ir embora é triste, é complicado, mas é um sentimento de dever cumprido. Você sabe que ele foi encaminhado, que agora vai estar numa situação boa", comenta Angela, contando que foi junto do menino num táxi para entregá-lo novamente à família de origem. "Ele ficava mudo, a gente falava e ele não respondia. Estava bem apreensivo, porque ele queria muito voltar pra família, mas ao mesmo tempo não queria ir embora. Estava dividido. Mas depois que ele chegou [e reencontrou a família] ele ficou feliz, começou a brincar, a sorrir, se soltou. E aí eu fiquei aliviada.”

 

O amor que se renova

Apesar do sentimento de dever cumprido, a partida do menino, inquestionavelmente, foi dolorosa para Angela. “Quando cheguei em casa e olhei deu um vazio. E era bem época de Natal. Deu uma tristeza…”, relata ela, que recentemente teve a oportunidade de voltar a se apaixonar, ao receber uma nova criança: um recém-nascido que tinha apenas 13 dias quando chegou e agora já está com três meses e meio. “Quando um vai, outro vem, você acaba se apaixonando novamente e assim vai”.

Assim que o bebê chegou, começou a correria para deixar tudo pronto para o novo membro da família: comprar roupinha, banheira, organizar quarto… Para piorar, o recém-nascido ainda chegou com o peito carregado, vomitando, e começou a apresentar febre. “Fomos consultar e a primeira médica falou que não era nada. Levei no Pequeno Príncipe, era começo de pneumonia. Nós ficamos uma semana internados, ele tomando antibiótico na veia. Foi bem sofrido.”

Desde então, o bebê já se recuperou e cresceu muito. Está sempre sorrindo, especialmente para a irmã, Julia, que ajuda a mãe a cuidar do irmão provisório. A família não sabe por quanto tempo mais ficará com o bebê, mas também tenta não se preocupar com isso.

“Se você for pensar no depois, você não vive o hoje, essa alegria de estar com eles. Não adianta fazer uma coisa pensando na hora de ir embora, tem de ir curtindo cada momento”, aponta Angela.

 

"Ajudar a fazer a diferença"

Dayanne Vieira, que está habilitada pela Acridas desde dezembro de 2020, ficou sabendo sobre o programa de acolhimento familiar pela televisão e logo se interessou em participar do projeto. “O motivo foi exclusivamente poder ajudar e querer fazer a diferença na vida dessas crianças”, diz ela, que é mãe biológica de uma menina de oito anos e está em seu primeiro acolhimento, cuidando há seis meses também de uma menina de 12 anos.

O fato de já ter criança em casa trouxe, especialmente no início, alguns desafios de convivência. Com o passar do tempo, porém, as jovens vão se acostumando com a ideia, entendendo, também, o sentido do acolhimento. Forma-se, efetivamente, uma nova família ou uma família ampliada.

“Temos uma filha biológica e existem, sim, alguns desafios de convivência, afinal, nossa filha era a única criança da casa e as atenções eram todas voltadas para ela. Mas com o tempo ela tem entendido que a criança acolhida não veio para dividir, e sim para somar. Elas convivem como duas irmãs: brincam, brigam… Normal”, relata Dayanne.

Até aqui, diz ainda ela, a experiência tem servido para ressignificar palavras como amor, cuidado e família. “Muitas dessas crianças, até como exemplo da minha própria, acolhida, elas não têm noção do significado de família, de rotina, de nada”, afirma Dayanne, que também imagina como será o momento de despedida, já que este é o seu primeiro acolhimento.

“Ficarei muito feliz quando a situação dela for resolvida. Ela está para adoção e merece ter uma família para chamar de sua. Então a torcida hoje para que ela seja adotada por uma família maravilhosa é grande”, diz a mãe. “Acredito que o dia da partida será um misto de sentimentos. De alegria, esperança, saudade…”, emenda.

 

Requisitos para participar

Para participar do programa Família Acolhedora é preciso cumprir alguns requisitos: ter mais que 21 anos, morar em Curitiba, ter estabilidade financeira, boa saúde física e mental. O interessado também não pode estar no Cadastro Nacional de Adoção, ter passado por luto recente, ter problemas com uso de álcool ou outras drogas, além de pendências com a Justiça ou conselho tutelar.

Além disso, as famílias participantes passam também por um processo de treinamento e capacitação, aplicados pelas organizações sociais Acridas e Recriar, e passam por avaliações psicológicas e psiquiátricas e cadastramento, quando podem direcionar, por exemplo, se preferem jovens do sexo masculino ou feminino, crianças ou adolescentes. Depois disso vem a autorização para acolher uma criança ou adolescente encaminhado pela Justiça. Todo o trabalho é ainda supervisionado pelas equipes técnicas do município e do Poder Judiciário e as famílias acolhedoras, que podem ficar até 18 meses com um jovem acolhido em suas casas, recebem um subsídio financeiro (bolsa-auxílio) de R$ 998.