Destaque histórico do Olhar de Cinema, “Salomé” supera barreiras do tempo com ousadia temática 29/05/2023 - 17:33

Felipe Worliczeck*

Mais difícil que construir mitos é a tarefa de derrubá-los. O longa-metragem “Salomé” (1923) foi produzido numa época de pura ebulição do cinema mudo, poucos anos antes de seu declínio, reforçado pelo lançamento do primeiro filme falado - “O Cantor de Jazz” (1927). Em seu centenário, o filme é lembrado na décima segunda edição do Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, que começa no dia 14 de junho, e tem a qualidade particular de conseguir olhar para o contexto histórico em que estava. E, para além disso, superá-lo em vários aspectos.

Codirigido por Charles Bryant e Alla Nazimova, a obra é uma das poucas produções de seu período dirigido por uma mulher. O roteiro, por sua vez, é uma adaptação de uma peça de Oscar Wilde, escritor, poeta e dramaturgo irlândes preso por ser homossexual na Inglaterra do séxulo XIX, autor da obra “O Retrato de Dorian Gray” (1890).

O filme “Salomé” é consciente dessas questões externas à obra, e faz delas a unidade de seu universo. O roteiro, por exemplo, utiliza-se da narrativa bíblica de João Batista (na película chamado de Jokaanan), decapitado por Herodes Antipas a pedido de sua sobrinha Salomé. Diferencia-se da narrativa cristã, porém, ao usar-se do hedonismo na atuação de seus atores, contando uma história de amor e desejo sexual.

O filme escapa do olhar inquisitivo da opinião pública da época por meio de uma direção lúdica, deixando a temática queer inerente à obra em seu subtexto. A disposição corporal do principal guarda da família Herodes em cena, interpretado por Arthur Jasmine, apresenta uma subjetividade nos movimentos negada a um homem “masculinizado” do início do século 20. A protagonista, interpretada pela própria diretora, é uma reinterpretação do que seria conhecido como femme fatale nas próximas décadas, a mulher que simboliza o perigo por meio de sua sexualidade.

Um dos maiores destaques do filme, seus cenários oníricos e irreais, simplificam bem essa relação implícita com temáticas identitárias como um precursor do que é chamado de camp, estética postulada pela crítica cultural Susan Sontag baseada no exagero e na sensibilidade profundamente subjetiva, associados à comunidade LGBTQIA+ como a negação de uma identidade heteronormativa.

O filme, porém, apresenta técnicas cinematográficas datadas mesmo para sua época. A insistência em planos gerais que simulam uma visão de teatro, por exemplo, lembram mais os primeiros anos da história do cinema, e não a complexidade cinematográfica já existente em obras do mesmo período, como “Bancando o Águia” (1924).

Apesar de ser tecnicamente datado para sua época, “Salomé” conta uma história que poucos ousariam contar numa época em que os filmes de maior sucesso continham temáticas preconceituosas, como “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de D.W. Griffith, obra considerada seminal para o cinema clássico que coloca o movimento supremacista da Klu Klux Klan em destaque. 

Ao invés disso, Alla Nazimova optou por um fracasso de bilheteria, distribuído anos depois de sua criação, que encerraria sua carreira como produtora, mas que conta uma história lembrada 100 anos depois pela sua honestidade e empatia.

SERVIÇO
Filme “Salomé” - no Olhar de Cinema 
Exibições dias 16 e 21 de junho 
Horários: 14h30 (primeira exibição) 14h (segunda exibição)
Local: Cine Passeio (R. Riachuelo, 410)
Ingressos à venda a partir do dia 1 de junho, pelo site Ingresso.com

* Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho