Documentário sobre os Racionais MC's retrata com maestria a profundidade de suas rimas críticas 30/11/2022 - 14:02

Lucas Franco*

No documentário “Racionais: das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, que estreou no dia 16 de novembro na Netflix, somos apresentados a uma linha temporal completa do quarteto formado por Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown), Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), Adivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kléber Geraldo Lelis Simões (KL Jay). O filme dirigido por Juliana Vicente reúne gravações, fotos, fitas, depoimentos e entrevistas dos componentes do maior e mais popular grupo de rap brasileiro, o Racionais MC's - assista ao trailer aqui.

De início, a obra nos apresenta fielmente o que era a cidade de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980, afim de explicar melhor o contexto em que o grupo surgiu. O Capão Redondo, bairro onde Mano Brown nasceu e cresceu, é descrito pelo próprio como uma área quase rural, onde a pobreza imperava. Ainda na zona sul, o Vaz de Lima, bairro onde Ice Blue passou a infância, foi considerado o mais perigoso da capital paulista na época. Segundo o próprio Blue, era comum as crianças irem jogar bola em um campinho local e se depararem com um corpo “desovado” quase todos os dias. Já do outro lado da cidade, KL Jay e Edi Rock moraram na Vila Mazzei, área residencial da zona norte paulista, conhecida por abrigar uma boa parte da comunidade operária.

O ambiente, ou melhor, o “solo” onde esses jovens pretos foram semeados, só não os deu um destino diferente graças a um fator importante: a música, sempre presente na vida de todos, mesmo durante os momentos de dificuldade. Os terreiros de umbanda, centros espíritas, igrejas evangélicas, rodas de samba e festas de comunidade são alguns exemplos que fizeram parte da vida dos integrantes, proporcionando a eles um contato mais próximo com o meio musical.

O início
Durante a década de 80, Mano Brown e Ice Blue já haviam começado sua carreira dentro hip-hop. Eles se apresentavam no extremo sul de São Paulo e eram conhecidos como B.B. Boys, chegando a ganhar inclusive concursos amadores de rap. Enquanto isso, no outro extremo da cidade, Edi Rock e KL Jay também já haviam feito uma parceria e se arriscavam no meio musical, um no microfone e o outro no comando das pick-ups como DJ. Parafraseando Guimarães Rosa: “Fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente”. E o destino é realmente engraçado, já que as duplas se conheceram por acaso em um concurso de hip-hop. O encontro logo deu espaço à amizade e ao reconhecimento de suas semelhanças profissionais, sociais e políticas.

“Racionais: das Ruas de São Paulo Pro Mundo” deixa claro que, se estivéssemos seguindo a receita para “criar artistas”, já teríamos dois ingredientes muito importantes: primeiro, a inspiração, proveniente do lugar de onde eles vieram. Segundo, o contato desde cedo com a música, em suas mais variadas formas. O que ninguém contava era com um terceiro ingrediente tão potente quanto os demais: o sentimento de revolta, elemento indissolúvel da vida de todos os envolvidos - fato que fica claro durante as quase duas horas de duração do filme. A pobreza, a violência e o tráfico, estavam diretamente ligados ao racismo e ao preconceito sofridos pela comunidade negra e periférica. Como fruto dessa mistura surgiu o Racionais MCs, que segundo os próprios integrantes, era um “grito de basta”.

Consolidação
Logo em seu primeiro lançamento como grupo, o Racionais já chamava atenção pela batida, rima e mensagem que buscava ser transmitida. A faixa “Pânico na Zona Sul” foi lançada pela gravadora Zimbabwe em 1989, como parte da coletânea “Consciência Black”. A música de aproximadamente cinco minutos conta com uma lírica carregada de críticas às entidades de segurança pública, embalada a uma mixagem da música “Mind Power” do ícone do soul norte-americano, James Brown.

Com o tempo, o grupo foi se consolidando e atingindo cada vez mais fãs e pessoas dispostas a entender a realidade nua e crua tratada nas letras, enquanto classes como a polícia sentiram-se extremamente ameaçadas com os discursos feitos. Outro público atingido são as pessoas que estavam distantes daquela realidade. Pelo filme, percebemos que elas de dividiam entre as que buscavam realmente entender e as que simplesmente queriam se apropriar daquela cultura periférica, mesmo nunca tendo visitado uma favela. Nessa onda chegam os clássicos de sucesso, como os álbuns “Sobrevivendo no Inferno” e “Nada Como Um Dia após O Outro Dia”, ambos com mensagens marcantes em busca de igualdade social, respeito, valorização cultural, superação e luta contra o sistema.

Fica muito claro como o Racionais atravessou gerações e se manteve firme. Fato que comprova isso é a evolução das críticas feitas através das músicas, nunca abandonando as temáticas centrais, mas se deparando com novos problemas que iam surgindo com o tempo. Um bom exemplo é uma entrevista de Mano Brown, em que o rapper relata que quando começou a ganhar dinheiro, muitas pessoas pretas da sua própria comunidade passaram a tratá-lo como alguém que não fazia mais parte da mesma realidade que eles, como se a grana tivesse resolvido todos os seus problemas. Ou quando as classes políticas tentaram se aproximar das comunidades, por interesse em uns votos a mais.

Apesar das polêmicas e dificuldades, o grupo de rap consolidou-se como o maior e mais influente do país, recebendo inclusive diversos prêmios como Rolling Stone Brasil (2015), Prêmio Multishow (2014)  e Ordem do Mérito Cultural (2006). A importância é tamanha, que o álbum "Sobrevivendo no Inferno", lançado em 1997 e considerado a obra prima do Racionais MCs, faz parte das "leituras" obrigatórias para realização do vestibular da Unicamp desde 2019. 

Fiel à luta
Mesmo para os que não gostam ou não se identificam com o grupo, o documentário é uma excelente opção para conhecer um pouco mais do que é a cultura da periferia, por meio de uma mensagem quase que didática. Além disso, o filme proporciona um resgate histórico da maior capital do país. Os motivos pelos quais os Racionais é um grupo odiado por alguns são equivalentes ao amor que outros tantos têm pelo quarteto. Admirar o grupo e sua história não é uma questão de gosto musical, mas de entender o papel destes músicos, verdadeiros interlocutores das classes marginalizadas, que através da música travam uma luta quase eterna por igualdade, respeito e sobrevivência.

*Estagiário, sob a supervisão de Cristiano Castilho