"Drive My Car” é dose certeira de Haruki Murakami, que publica novo livro após seis anos 22/05/2023 - 15:00

Felipe Worliczeck*

Haruki Murakami, um dos maiores nomes da literatura contemporânea, retorna à opinião pública por dois motivos. A primeira é o lançamento de seu novo livro “The City and Its Uncertain Walls”, em 2023, que quebra seu hiato de seis anos. Além disso, o livro “Primeira Pessoa do Singular” chega ao Brasil pela primeira vez no dia 29 de maio, pela Alfaguara. Para quem não conhece o escritor japonês de 74 anos, alguns de seus principais temas estão presentes em “Drive My Car", conto presente em seu livro “Homens Sem Mulheres” (2014). O texto virou inspiração para o filme homônimo, indicado ao Oscar em 2022 e atualmente em cartaz na MUBI.

Na história, um ator com aversão a mulheres no volante encontra-se na companhia de uma motorista, e a trama se desenrola por aí. Em apenas vinte páginas, Murakami desenrola um novelo de complexas questões, como a morte de um ente amado, adultério e questões de gênero. A escrita, porém, se adequa ao estado de espírito do personagem: Kafuku, protagonista da história, é um homem conformista, no sentido mais triste da palavra.

Quando ele descobre que a esposa o traiu, não demonstra fortes emoções, e frequenta os bares da cidade com a única pessoa que lembra de ter sido amigo: o amante de sua falecida cônjuge. Ela morreu, assim como o filho dos dois, mas Murakami não faz floreios sobre a morte, jogando flores em cima de hipotéticos caixões. Kafuku não faria isso. Essa percepção de adequar a forma ao conteúdo é um dos vários traços que faz “Drive My Car” um conto que evidencia a qualidade de seu criador.

A escrita, que rejeita qualquer poesia, usa de uma prosa direta. O escritor desenrola o novelo de sua trama um pedaço de cada vez, nos tornando cúmplices da história que narra.

Murakami e os Beatles
Haruki Murakami é fã de rock, tornou-se DJ e costuma criar playlists nas horas vagas, e tornou esse hábito público em 2022, quando decidiu fazer uma sobre a Guerra da Ucrânia. Apesar de “Drive My Car” ser uma música dos Beatles, o texto e a música não casam bem (se apreciados simultaneamente). A verdadeira trilha sonora do conto “Drive My Car” é “Eleanor Rigby”, faixa do álbum “Revolver” (1966) e lado B do compacto “Yellow Submarine”.

De acordo com a música, Eleanor Rigby foi uma mulher que “morreu em uma igreja, sepultada junto ao seu nome”. Padre Mackenzie escreveu um sermão que ninguém ouviu, e limpou sua mão suja de terra na batina enquanto se afastava do túmulo. Pelo menos é isso que sabemos da história, e nem sabemos se é verdade. Diz a lenda que os Beatles acharam o túmulo de Eleanor em Liverpool, e a música, que leva o mesmo nome, surgiu. Seu epitáfio de fato existe, mas Paul McCartney diz que a inspiração para a composição veio de seu subconsciente.

Os bastidores da música pouco importam. Fato é que nenhum de nós saberíamos o nome dessa mulher que conhecemos tão pouco. Sua vida, assim como a morte, foi lembrada com a mesma apatia que Kafuku teve diante da morte de sua mulher, limpando as mãos da poeira dos ossos de quem amou enquanto se afastava da cremação.

Narrar o silêncio é uma das provas de quem é bom autor (e quem não é). Mais difícil que isso, porém, é narrar o silêncio desconfortável, ou a falsa sensação de conversa repleta de assuntos banais.

Kafuku, mesmo apreensivo, contrata Misaki, uma mulher, como motorista particular. Ela tem em torno de 20 anos, mas esconde a sua verdadeira idade por meio de seu cabelo desgrenhado e marcas no rosto. Fala muito com as poucas palavras que diz, e essas poucas palavras raramente demonstram algum sentimento.

Com o preconceito contra mulheres no volante de um lado e a misantropia de outro, pensa-se que o conto, que consiste majoritariamente de diálogos, será tedioso. Essa ideia se prova falsa em suas primeiras linhas, em que o autor consegue tirar interesse na troca da marcha de um carro, como se tirasse água de poço, não de pedra. Resta agora ao leitor descobrir por si próprio como assuntos banais se tornam épicos em “Drive My Car”, que fala de muitas coisas, não só sobre dirigir um carro.

*Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho