Elza Soares: como dar adeus a uma deusa? 21/01/2022 - 13:30

Cristiano Castilho

Uma deusa de carne e música, de luta e futurismo. De suingue e resistência, de reinvenção, e por isso mesmo, de eternidade. “Morreu” é modo de dizer. Elza vive e canta e dança ainda porque tem a força de muitos povos. De poetas, tradições, bênçãos, giras. Elza foi o presente, reconstruiu o seu próprio passado. E seguirá sendo o futuro.

Ou é coincidência, ou é a força da natureza: deu que Elza morreu num 20 de janeiro, mesma data em que seu grande amor, o anjo de pernas tortas, o craque de cabeça louca - e de vida curta. No dia de Oxóssi, e de São Sebastião. O mesmo São da Mocidade Independente de Padre Miguel, sua Escola de Samba do coração.

“Volta Por Cima”, “Dura na Queda”. Elza Soares foi a cantora e compositora que escreveu parte da história da mulher negra no Brasil. Em sua essência, em sua dor, em sua labuta e em sua glória.

“Se Acaso Você Chegasse” é o nome do seu primeiro LP, de 1960. Leci Brandão ouviu, e se apaixonou. Elza virou referência para Leci, imagine só. Porque seu legado foi permanente. Do sambalanço na Odeon nos anos 1970, até o surgimento de Clara Nunes, só dava Elza. A voz, o alcance, a técnica, o improviso, a força, o deboche.

Por essa época, Elza lançou Jorge Aragão como compositor. Foi vanguardista também nas gravadoras independentes, já que a turma só queria o rock de Brasília. Os anos 80 foram pesados. Perdeu três dos sete filhos que teve. Dois, ao que consta, morreram de fome. Mesmo na pindaíba, Elza lançou disco importantes como “Voltei”, um recado para quem ainda não conhecia a mulher do fim do mundo.

Elza é força que nunca desafina. Foi símbolo da seleção brasileira na conquista da Copa do Mundo do Chile, em 1962. Mas já reportava as agressões de Garrincha, seu amor maldito. A opinião pública (leia-se machismo e racismo), a acusou de ter abandonado o marido.

Elza nunca deixou de dar a volta  por cima, fosse como fosse. A primeira feminista do Brasil. A negra barrada por um empresário que não quis ouvir sua voz de negra não tinha rótulos porque não era refrigerante, como dizia. Elza cantou de Lupicínio Rodrigues a Assis Valente, de Caetano Veloso a Emicida, de Luiz Melodia a Luis Armstrong. Samba, soul, funk, trap, rap, eletrosamba, uma necessidade natural de se renovar para não morrer, mesmo em vida.

Não há artista, homem ou mulher, que tenha se reinventado da forma como Elza fez a partir dos anos 2000. Foram 22 anos de apreciação e reconhecimento por uma geração que já não estava muito mais interessada no que aconteceu, mas que queria saber sempre no que ela estava se metendo. Com Rômulo Fróes, Pitty, Kiko Dinucci, BayanaSystem, Liniker, com Letícia Sabatella. Comentava sobre Big Brother e já vendia NFTs. Elza, a mulher do fim do futuro.

A cantora do milênio certa vez disse que queria morrer na cama, num momento de pleno amor. E também que não tinha medo de nada, pois “temos que ensinar o medo a ter medo de nós”. Elza Soares saiu de cena com a agenda cheia. Deixou um DVD e um álbum prontos, a serem lançados nos próximos meses. Parece até que foi de propósito. Elza partiu num dia especial. O dia em que a bossa negra se eternizou. O dia em que Deus se revelou mulher.