Em “Afire”, Christian Petzold usa mudanças climáticas como metáfora para falar de relações contemporâneas 20/12/2023 - 15:35

*Felipe Worliczeck Martins

Toda obra cinematográfica é produzida a partir de um contexto - seja ele político, cultural ou histórico - e pode ser um reflexo direto das condições em que foi criada ou apenas seu resultado. Em “Afire” (2023), filme vencedor do prêmio da crítica no Festival de Berlim e da Mostra de Cinema de São Paulo, o diretor alemão Christian Petzold decide intencionalmente unir roteiro e direção em um filme que retrata o espírito do nosso tempo frente às mudanças climáticas ao acompanhar as relações de quatro amigos em uma casa cercada por incêndios florestais (veja trailer abaixo).

O longa começa ao nos apresentar seu protagonista Leon (Thomas Schubert), escritor frustrado que busca no interior da Alemanha um refúgio para trabalhar em seu segundo romance acompanhado de seu amigo Felix (Langston Uibel), fotógrafo que pretende aproveitar a viagem para expandir seu portfólio. 

Os problemas que Leon enfrentará na viagem já aparecem na cena inicial: o motor do carro pifa, e ambos são obrigados a ir a pé para a casa que irão dividir. Lá, descobrem que ela também é ocupada por Nadja (Paula Beer) e por Devid (Enno Trebs), que mantêm uma “amizade colorida”.

Leon acredita que sua rotina de trabalho será arruinada com as mudanças de planos e novidades, já que agora deverá compartilhar quarto com Félix, sem nenhuma mesa para escrever. As paredes são finas e ele se frustra com o fato de que consegue escutar o que se passa no quarto de Nadja e Devid toda noite. Félix, por sua vez, decide dar um mergulho no mar e lá tem a inspiração para o tema de suas fotografias.

À medida que Felix avança em seu trabalho artístico e começa a namorar Devid, Leon se sente cada vez mais deslocado e é capaz de transformar seu trabalho artístico em um processo burocrático, atitude que resulta em uma queda na qualidade de sua escrita e obra. Neste aspecto narrativo, é um filme moralista, pois evidencia um certo maniqueísmo entre as duas personalidades apresentadas, além de discursar sobre a falta de aproveitamento da vida por parte de seu protagonista. Ao nos propor uma espécie de “lição”, o filme toma um aspecto fabular.

Descontrole planejado
Os incêndios florestais se inserem nesse contexto como o pavio que vai tensionar as relações entre os diferentes personagens. No início do filme, mal sabemos sobre sua existência. Escutamos apenas helicópteros sobrevoando o céu; ao desenrolar da narrativa, ele avança sobre a floresta e invade cada vez mais as vidas que acompanhamos, da mesma forma que Leon torna-se intransigente com seus amigos.

A diferença de “Afire” para outras abordagens com temáticas semelhantes reside em sua direção. Petzold, um dos nomes mais importantes da geração conhecida como Cinema de Berlim e considerado pelo The New York Times o diretor alemão mais importante da atualidade, utiliza técnicas bastante protocolares e tradicionais, focando em diálogos, com poucos movimentos de câmera; a maioria das cenas se passa na casa ou na praia praticamente deserta. Em resumo, é um longa com cenas bem controladas e poucas variáveis.

Essa relação entre forma e conteúdo desperta uma sensação bastante peculiar no espectador: apesar do aparente caos e perigo da situação, a linguagem do filme imprime uma ideia de controle sobre o pequeno universo que constrói. 

A partir desta escolha, o cineasta utiliza da relação do fogo com seus protagonistas de duas maneiras. Em primeiro lugar, ressalta a indiferença que eles têm com aquela situação, em especial Leon, consequência direta da impossibilidade de impedir o avanço do fogo. Isso, em uma interpretação mais abrangente, discursa sobre a alienação da sociedade com a atual situação das mudanças climáticas, fazendo com que catástrofes e desastres naturais, como incêndios, sejam cada vez mais comuns e difíceis de serem mitigados.

Por outro lado, essa apatia com a própria realidade também é uma maneira de externalizar os sentimentos de Leon. Ele se afasta de seus amigos e não consegue se conectar com eles, seja de maneira inconsciente ou deliberada, relação essa que transparece em seu próprio figurino. Mesmo em uma praia e no verão, ele apenas veste roupas formais e de trabalho.

Mas esse elemento - a indiferença - é também o que justamente causou os problemas da trama, tanto externos (os incêndios florestais) como internos (as angústias de nosso protagonista). Incapaz de se relacionar com os outros, ele torna-se mesquinho e agressivo, em uma espécie de complexo de superioridade.

“Afire” é um exemplo ilustrativo de uma obra que consegue trabalhar bem roteiro e direção. Em “Afire”, as escolhas estilísticas pouco arriscadas de Petzold não implicam necessariamente em uma falta de virtuosismo, mas funcionam de maneira inteligente com a temática proposta, relação essa que traz unidade narrativa ao longa, um dos bons filmes deste ano. 

*Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho