"Em casa com os Gil" - 80 anos do adepto da bondade radical 25/06/2022 - 18:18

Beto Pacheco

“Sou adepto da bondade radical”, com essa frase o compositor imortal Gilberto Gil define seus princípios de vida. Ela é dita em um dos cinco episódios da série documental Em casa com os Gil (dirigida e produzida por Andrucha Waddington), lançada na última sexta-feira, 24, na plataforma Prime Vídeo. Mais uma das inúmeras e merecidas homenagens prestadas ao gênio baiano, que completa 80 anos neste domingo (26). Eu assisti a todos os episódios numa sentada e, ao longo de três horas (cada ep. tem pouco mais de 30 minutos), poderia encher com teimosas lágrimas emotivas a saudosa piscina regan que alegrou a minha infância e a de meus irmãos.   

Inclusive, a série fez com que a primeira versão deste texto, iniciada no meio da última semana, fosse por terra. Pois comecei 80 vezes a escrever um artigo em homenagem a Gil e, em todas, o achei burocrático. Armadilha corriqueira quando se ousa perfilar um gigante entre os gigantes, seus cânticos dos cânticos e multiversos octogenários. Parecia-me, o que eu havia escrito, com uma certa “ausência de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir” (Back in Bahia).   

Porém, não fiquei chateado com as minhas palavras “perdidas”. Afinal, com a chegada da série, “sinto como se ter ido fosse necessário para voltar”.

Dizendo sem querer dizer, frase com a qual Gil repreende o filho Bem durante uma discussão sobre futebol (gente como a gente), “Em casa com os Gil” acompanha uma das famílias mais famosas da música brasileira durante os primeiros dias da criação de uma turnê histórica, que vai reunir todas as gerações no palco pela primeira vez - o primeiro show é neste domingo, data dos 80, na Alemanha. A série mostra os bastidores dessa preparação, reunindo um ano atrás, quando Gil completava 79, a esposa, os filhos, netos, bisnetos, genros e noras em um sítio na região serrana do Rio de Janeiro. Dias que o patriarca define, analisando sensações e personalidades, como se tivesse sido envolto por um "cobertor de afeto, uma colcha de retalhos”.

Lá estão a escolha do repertório, os ensaios, momentos à mesa, falas sobre o legado do sobrenome (ao que parece, Gil fica chateado quando tiram o “Moreira” dos netos, mas deixa estar “o direito de cortar” de cada um), conversas sobre racismo, sobre o sagrado e a morte, sobre culinária, sobre amor-próprio, revelações "bombásticas", o exílio em Londres, Ditadura Militar, o Ministério da Cultura, horas de culto, choros, risos, memórias, debates acalorados… O pacote completo. 

Ao que me parece, não há quem veja a série e não venha a pensar ”gostaria de estar junto com essa turma”. Logo no primeiro episódio, eu fico tocado sobremaneira ao descobrir que Beto já falava desde os três anos à sua mãe, a professora Claudina Passos Gil Moreira, que “seria músico”. Beto, claro, era como o pequeno Gilberto era chamado por ela e por José Gil Moreira, o pai médico. Talvez ali, no compartilhamento dessas quatro letras em nome, B-E-T-O, eu já tenha me colocado, de modo um pouco impertinente, “entre” os seus. Sensação que foi reforçada na cena em que Gabriel, um dos netos, revela estar emocionado, pois “jamais imaginou sequer ensaiar com o avô”, quanto mais participar de uma turnê na Europa.

Também nunca vislumbrei tal possibilidade, Gabriel.  

A escolha do repertório foi feita de maneira lúdica, o que dá o fio condutor de toda a série. Cada um dos integrantes da família teve direito a escolher uma canção, contudo, teria que a “defender”. Ou seja, provar com argumentos que ela “merecia” estar. A palavra final, claro, seria de Gilberto Gil. Terminada cada explanação, invariavelmente seguida de aplausos, emoções e cantoria, a pessoa passava a vez, apresentando essa outra pessoa à moda ‘amigo secreto’. Em dado momento, talvez contemplando o espraiar da sua descendência e calculando o tamanho do repertório, Gil percebe que é melhor garantir-se: “Acho que eu vou guardar uma cota de três ou quatro músicas pra mim”, avisa com um sorrisinho malicioso.

Com um planejamento meticuloso (a cargo da GeGe Produções Artísticas, que cuida da carreira do compositor há mais de 40 anos), na mesma sexta-feira (24) um álbum, gravado ao vivo naqueles dias, com 15 das músicas selecionadas, foi lançado nas plataformas de áudio. Veja o set list escolhido pela família Gil - e suas respectivas defesas:

 

Palco (1981)

Nara, filha de Gil, diz ter escolhido esta canção porque a faz lembrar da primeira vez, aos 14 anos, que subiu no palco do Teatro Castro Alves para cantar ao lado do pai. “Essa música é a síntese do que é essa ligação com o palco, em seu lado humano, social, físico, de trabalho”, finalizou. Na sequência, Gil revela que a canção foi feita, originalmente, como despedida, pois ele pensava em parar de cantar profissionalmente. “Um daqueles períodos em que eu tinha um fastio e não me achava suficientemente competente”, disse. Felizmente, na contramão do intuito, tal beleza parece o ter impedido.

 

Barato Total (1974)

“Ela foi gravada só por mulheres, Gal, Zizi e Liniker, e pensei que seria legal as mulheres da família cantarem essa música”, argumentou a filha Marília ao apresentar a sua opção.  

 

Back in Bahia (1972)

O neto Pedro lembra do sentimento, quando criança, de ouvir as pessoas falarem “ah, o seu avô foi exilado” e eu não entender bem o que isso queria dizer. Além disso, a escolheu por ver na canção uma mensagem de que no mundo as coisas acontecem, sem controle, e que é preciso tocar a vida em frente. No que se refere ao estilo, Gilberto Gil diz na sequência que a música “é um blues nordestino”. 

 

Esotérico (1982)

Escolhida pelo neto Gabriel, foi selecionada por ele em virtude da sua identificação. “Sou uma pessoa com dificuldade em me entender. Ser esotérico, não tão esotérico assim”. Para ele, a pandemia, com tantos desencontros e lutos, foi um momento em que o tema dessa canção se fez mais necessário. 

 

Queremos Saber (1976)

João, neto que faz aniversário no mesmo dia em que Gil, disse que, em tempos negacionistas, esta música se mostra muito atual, por trazer uma “fé na ciência”. Ele disse ter conhecido a canção na voz de Cássia Eller e só depois ter ouvido a versão do avô. 

 

Superhomem - a Canção (1979)

“Essa música abre a cabeça para a desconstrução do machismo”, começou assim a sua fala o genro Rodrigo, marido de Preta. "Minha esposa me ajudou muito a ter essa visão do feminino. Então escolhi essa música na qual, apesar do nome, a protagonista é a mulher", finalizou. O sogro, sorrindo, respondeu: “compreendeu bem, hein?”

 

Drão (1982)

“Uma música que fala de separação, mas que também fala de um amor transcendido”, assim Fran, neto, filho de Preta, apresentou sua opção. A canção foi feita para a avó de Fran, Sandra Gadelha, terceira esposa de Gil, durante a separação do casal. O autor ainda disse que “essa música é indispensável”. 

 

Sereno (2018)

A nora Mariá escolheu essa canção, que leva o nome do 10º neto de Gilberto Gil, como uma homenagem a todos os netos do compositor. “Enquanto fazia a música, ele repetia ‘Vovô gostou do nome Sereno’ duas vezes. Ora, por que não colocar ‘vovó’ na segunda vez?”, cobrou a avó Flora, prontamente atendida. 

 

Não Tenho Medo da Morte (2012)

Selecionada por Bento (neto), que diz que a escolha se deu por que ela trata de um assunto que o “faz refletir muito”. Bento confessou em sua apresentação que a morte é um assunto que (além do futebol) o conecta ao avô. “Ele se parece comigo”, comenta Gil logo após. 

 

Cores Vivas (1981)

Escolhida pela filha Bela, foi a primeira a entrar no repertório. “A música que eu mais amo desde sempre”, disse. Segundo a culinarista e apresentadora, foi a composição que o pai fez a ela “sem ele nem saber” que era para ela: “De cor azul / Bela visão”.

 

Babá Alapalá (2006)

A nora Mãeana a escolheu por lembrar do dia em que o filho, Dom, ainda muito pequeno, acompanhou o avô - que a entoava - tocando um caxixi

 

Touche Pas à Mon Pote (1985)

JP Demasi, um dos genros, escolheu esta canção cuja letra, em francês, é um manifesto contra o racismo. Foi cantada no icônico show, do então ministro da Cultura Gilberto Gil, na ONU. 

 

Feliz por um Triz (1984)

Maria, filha de Gil, escolheu essa música para que Pedro, primeiro filho de Gil com Sandra Gadelha, estivesse representado. Nascido em Londres, durante o exílio, Pedro faleceu aos 19 anos, em 1990, num acidente de carro. 

 

Sítio do Picapau Amarelo (1977)

“Eu escutava essa música todos os dias e nunca me veio à cabeça que essa música poderia ser do meu avô”, revelou o neto Lucas. Segundo ele, colocá-la no repertório seria uma forma de resgatar a criança interior. 

 

Realce (1979)

“Quando meu pai a lançou, eu tinha cinco anos. Eu a achava linda, brilhante, mas só depois, adulta, fui compreender a importância que ela teve na formação do meu caráter e da minha personalidade”, disse a filha Preta Gil ao apontar esta canção como a sua escolhida. Ela completou: “Essa música é um grito de libertação e de respeito, pelas ditas minorias, que na nossa família sempre foram maiorias. ‘Realce’ fala sobre você não ter vergonha de ser quem você é”. 

 

Algumas músicas tocadas e lembradas durante a série não foram contempladas, não estando no álbum “Em casa com os Gil”, mas podem aparecer no repertório dos shows. Eu, estando junto àquela turma incrível, teria selecionado “Estrela” (1997), mas guardarei meus argumentos, minha defesa, para o próprio Gil, quem sabe, um dia. Afinal, é ele quem define os repertórios e nos resta celebrar tudo o que ele consentir.