Gravado há 54 anos, “Tropicália ou Panis et Circencis” refundou a música brasileira 04/05/2022 - 10:50

Thobias de Santana

A atmosfera dos anos 1960 era tumultuada, potencialmente revolucionária e encantadora. Estava em curso a transição das missas do latim para o português. Considerável parte do mundo era governada por regimes militares. Houve o movimento francês de maio 1968, festivais da canção florescendo pelo Brasil, guerras tristemente quentes, como a do Vietnã, e a fria, entre uniões desunidas. Em meio a tudo isso, surgiu no Brasil a Tropicália.

O movimento libertário e irreverente propunha uma ruptura cultural. Embora bebesse também na fonte do rock da época – principalmente Beatles e o álbum "Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band" (1967) – misturava, também, vários outros elementos e correntes alternadas e alternativas. Por isso radicalizou nas inovações estéticas e abriu várias possibilidades para uma refundação da música e da cultura brasileira.

O movimento surgiu com força total liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Foi alimentado por inquietação semelhante à que resultou na proposta do Cinema Novo, e por ventos que vinham da Semana de Arte Moderna de 1922 via Oswald de Andrade. A Tropicália foi tomando forma nos tempos dos Festivais de Música Brasileira, ganhando contribuições e membros como Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Nara Leão, Gal Costa, maestro Rogério Duprat, Os Mutantes, entre outros, até o disco coletivo, proposto por Caetano.

Muitos consideram como marco fundamental do movimento a gravação do manifesto musical “Tropicália ou Panis et Circencis”, gravado em maio de 1968. Com uma pequena alteração na grafia, a canção “Panis et Circenses”, composta por Caetano e Gil, entrou no LP “Os Mutantes”, também em 1968. Sua tradução conhecida é “pão e circos”, numa evidente crítica social, a exemplo do que ocorreu também em Roma, quando o termo foi cunhado pelo escritor romano Juvenal, que criticou a política do pão e circo implementada pelo império.

Mas o manifesto tinha mais. “Miserere Nobis” (Tende Piedade de Nós), “Parque Indústria”, “Geleia Geral”, “Baby”, “Bat Macumba”, entre outras pérolas que estimulavam a reflexão, não como mera opção de nome para o álbum, mas como uma indagação sobre a postura desejada para a vida, ou seja: vocês preferem uma nova cultura representada no termo Tropicália ou preferem pão e circo?

Na música, Caetano, Gil e cia. ilimitada propuseram uma ruptura da sonoridade da música popular brasileira conhecida à época, acomodada em violões e canções de protesto. “Panis et Circences”, o álbum, a canção e o manifesto, auto-consumiram ritmos tradicionais brasileiros, como baião e samba, e o transmutaram numa linguagem mais moderna, com teclados e guitarras – o que fez a banda dialogar com o melhor do pop mundial à época.

A verdade é que não se pode compreender o movimento sem buscar conhecer o que existia antes dele, numa pesquisa que, além de prazerosa e importantíssima, revela muito sobre a razão de sermos como somos. A Tropicália pedia passagem, o que de certa forma foi negado em vários momentos. Mas eles, como o latim, passaram assim mesmo e, passando, ficaram para sempre na história e no DNA de tudo que veio depois.