"Hamlet" com atores com Síndrome de Down arrebata público na abertura do Festival de Curitiba 28/03/2023 - 17:25

Cristiano Castilho

     

A 31ª edição do Festival de Curitiba começou na noite da última segunda-feira (27), de forma histórica e surpreendente. A companhia peruana Teatro de La Plaza, formada por atores e atrizes com Síndrome de Down, apresentou no Teatro Guaíra, para imprensa e convidados, uma montagem de “Hamlet”, clássico absoluto do teatro, escrito por William Shakeaspeare (1564-1616).

Na trama já conhecida, Hamlet, príncipe da Dinamarca, quer vingar o pai, morto pelo tio Claudio, que assumiu o trono e se casou com Gertrudes, por sua vez, mãe do protagonista. Poder, política, paixão, insanidade e inadequação ao mundo são alguns dos temas que, quatro séculos depois, vieram ainda mais à tona no texto do bardo inglês. Certamente pela direção esperta do espetáculo, e da atuação memorável do elenco.

Foi perceptível a diversidade de reações de uma plateia curiosa e deliciosamente entregue ao que era proposto. “Hamlet”, pela companhia Teatro de La Plaza, ressignifica o “ser ou não ser”, questão fundamental do dramaturgo inglês. A transforma, em meio à alternância de climas, numa jornada metafísica, que, por fim, nos coloca frente a frente com nossos próprios preconceitos e fantasmas. Com a utilização de recursos diversos, como multimídia, interação com o público, música e quebras variadas da quarta parede, “Hamlet” traz a discussão essencial da suposta podridão no reino da Dinamarca para um cotidiano palpável, em que a condição humana se mostra única, mesmo em meio a diferenças superficiais – um cromossomo a mais.

Houve momentos engraçadíssimos, como quando um dos personagens liga para o ator britânico Ian McKellen (o Gandalf, de “O Senhor dos Anéis”), que inesperadamente surge num vídeo no telão, via ligação de whatsapp. A conversa é sobre decisões importantes da vida – ceviche e Peru inclusos. Há um impacto grande logo no início do espetáculo, quando a imagem, sem cortes, do nascimento de um bebê (parto natural) estampa silenciosamente a tela. Há um beijo romântico, filmado sob uma tomada inventiva. Coisas banais, como o amor, que ganham vida, força e naturalidade em corpos neurodiversos.

A ironia fina e o rir de si mesmo são elementos importantes na montagem, que segue, do começo ao fim, borrando as fronteiras entre a interpretação clássica do texto e os exemplos particulares que vão se acumulando no palco, para aí ganharem novos sentidos imediatos. “Me desculpem se eu esquecer de alguma parte do texto. Ou demorar para declamá-lo”, avisa uma atriz. Ao final, todo o elenco canta e dança, ao som de rap, de “Despacito”, de rimas que nos fazem ver além da forma.

Por fim, nos perguntamos: o que ser? Como ser? Ou, como ser sendo quem é? Existem milhares de montagens de Hamlet. Todas elas recriaram o personagem desbravador e sua busca algo melancólica por justiça (?). Mas nenhuma atingiu este nível de luminosidade em questões existenciais como fez a da trupe peruana. Porque a resposta não é filosófica, é cotidiana: somos iguais perante o inexplicável.

*“Hamlet”, da companhia Teatro de La Plaza, tem mais uma apresentação nesta terça-feira (28), no Guairão, com ingressos esgotados.