Maria Bethânia e sua voz trovão de mansidão, com tons de cobre e água-marinha 18/06/2022 - 11:18

Beto Pacheco

Quando Maria Bethânia, aniversariante deste sábado (18), entoa a primeira frase na canção Pantanal - tema de abertura da novela homônima que tem conquistado, novamente, o país (remake do sucesso de 1990) -, o coração estremece. Não há como ficar indiferente à sua voz, que nos transpassa por vezes de forma até contraditória, pois é um trovão de mansidão. 

Timbre profundo, interpretado com tal emoção, sem forçar, que a revista Rolling Stone Brasil, há 10 anos, a elegeu como a 5ª maior voz da música brasileira em todos os tempos. O texto que a apresenta é de seu irmão, Caetano Veloso, que lá escreve: “Sua voz também sempre foi assim peculiar, com tons de cobre e de água-marinha. É uma textura que veicula sentimento e inteligência intensos e imediatos. É uma voz-pessoa, indissociável. E desde sempre atada à música através da poesia." 

Com tal apresentação do autor de “O Quereres”, eu já poderia (deveria) parar por aqui, mas, em seus 76 anos de vida e glória, elencar alguns momentos da “Abelha Rainha” se faz fundamental. Vale lembrar, por exemplo, que, em 2016, Bethânia foi campeã do carnaval carioca, homenageada pela Estação Primeira de Mangueira. O enredo foi “A Menina Dos Olhos de Oyá”, cujas etapas são bem retratadas no ótimo documentário “Fevereiros” (dirigido por Marcio Debellian). Além dos processos de se fazer um carnaval, ele a acompanha do Rio de Janeiro, no vitorioso desfile da Verde e Rosa, até Santo Amaro da Purificação (local de nascimento da cantora), no Recôncavo Baiano, registrando as raízes familiares e religiosas.

Sua carreira musical começou quando ela se mudou para o Rio, em 1965, a convite da musa da Bossa Nova, a cantora Nara Leão. A intenção era que Bethânia, que Nara conhecera em uma viagem à Bahia meses antes, a substituísse no espetáculo “Opinião”, que fazia tremendo sucesso desde o ano anterior. Nele, Nara cantava ao lado de Zé Keti e João do Vale, sob a direção de Augusto Boal (e direção musical de Dori Caymmi), no Teatro de Arena, em Copacabana.

“Opinião” era um acontecimento, sucesso de público e de crítica, sendo encenado em pleno regime ditatorial militar e visto pelos autocratas como panfletário e subversivo. Felizmente era mesmo, ao menos no que se refere tais “acusações” aos olhos dos obtusos. Afinal, o espetáculo ousava reunir um nordestino, um carioca do morro (ambos pobres e pretos) e aquela cujo estereótipo poderia colocá-la sob a ótica da “mais patricinha” das cantoras da Zona Sul carioca. Nada menos verdade, pois o espírito rebelde e de luta foi se construindo no peito de Nara ao longo dos anos, principalmente após iniciar relação com o cineasta moçambicano Ruy Guerra. Os três, Nara, Zé e João, cantavam canções que denunciavam a desigualdade, a injustiça social e o arbítrio. Pois a substituição por Bethânia deu ainda mais contraste ao trio. Ela cantou, assombrou e se tornou musa de tudo. 

Dali saiu o primeiro hit da cantora: “Carcará”, de João do Vale e José Cândido. No mesmo ano, a baiana assinou contrato com a gravadora RCA e lançou seu homônimo álbum de estreia.

Ao ouvir aqueles primeiros registros, percebe-se que Bethânia buscava empostar um pouco a voz. A juventude talvez não a fizesse perceber que, se sussurrasse, seria capaz de reverter a rotação da Terra. Mas logo ela relaxou e entendeu o domínio que tinha do seu entorno, do palco e do microfone. Hoje, ao ouvi-la em "Pantanal", isso fica explícito. Em dado momento da canção, que tende a nos fazer achar que o canto haverá de explodir, Bethânia nos aplica um drible-elástico e o joga para o subsolo do grave, ao ocaso do expiro. E aí, quem não vê os pelinhos do braço arrepiar é porque jaz sete palmos abaixo.  

Foi a primeira cantora brasileira a atingir a marca de 1 milhão de discos vendidos, com “Álibi” (1978) e, entre trabalhos inéditos, parcerias e coletâneas, (atualizando dados do Diário de Pernambuco, em matéria de 2016) tem 36 discos gravados em estúdio e 16 álbuns ao vivo que somam mais de 26 milhões de cópias vendidas - com 2 milhões de ouvintes mensais nas plataformas de streaming. Ela tem também 11 álbuns com compilações de seus grandes sucessos e 65 em obras de outros artistas. Entre alguns desses encontros, estão momentos icônicos com Chico Buarque, Edu Lobo, Vinícius de Moraes, Zeca Pagodinho e, claro, os “Doces Bárbaros” Caetano, Gil e Gal

Os Doces Bárbaros formaram um grupo idealizado por Bethânia para durar pouco, mas que transcendeu seu tempo. Lançaram apenas um disco (1976), registro de uma apresentação ao vivo na praia de Copacabana - a intenção era percorrer o país celebrando as carreiras individuais dos quatro até ali. Quase duas décadas depois, em 1994, a Mangueira (olha ela aí de novo) os transformou em enredo, com o inesquecível "Atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu". Não ganharam o título, mas ganharam a eternidade. E, seja lá o que isso importe, também se apresentaram à rainha da Inglaterra.

O fato é que, com um cabedal quase incomparável de belezas, algumas músicas interpretadas por Bethânia ficarão para sempre gravadas como bálsamo na cultura brasileira. Entre elas, vale destacar “As canções que você fez pra mim” (Erasmo e Roberto Carlos); "Samba da Benção" (Baden Powell e Vinícius de Moraes); "Não dá mais pra segurar - Explode coração" (Gonzaguinha) e, talvez a minha preferida, "Reconvexo" (Caetano Veloso). Talvez por ver nela a essência da voz de Bethânia, que mais do que recôncava e reconvexa, é o máximo.