"Missa" de Emicida ecoa a pluralidade vibrante da música brasileira 08/04/2022 - 14:30

Cristiano Castilho

Foram dois anos de espera. O show “AmarElo”, de Emicida, estava marcado para a edição de 2020 do Festival de Curitiba. Veio a pandemia, e alguns pandemônios. A suspensão de quase tudo. O rapper, que cresceu na zona norte de São Paulo, ativou sua carreira durante este tempo. Investiu na literatura, na moda, no mercado, no cinema (com o excelente documentário de mesmo nome), na televisão, enquanto “AmarElo”, seu álbum de 2019, curava em meio a números assombrosos nas plataformas digitais e na boca do povo – novos fãs e antigos admiradores de suas rimas potentes se encontraram, portanto, mesmo a distância.

Um dos pontos altos da 30ª edição do Festival começou mesmo antes do evento. Os ingressos para a primeira sessão da apresentação de Emicida se esgotaram em menos de 24 horas. Os da segunda também. E assim seria se houvesse um terceiro ou um quarto show. Emicida colocou mais de 4 mil pessoas no Guaíra na última quinta-feira (7), numa sessão matinê às 17h, e na oficial, às 21h. 

O show de Emicida é uma missa depuradora. O cenário, composto por vitrais que alternam suas cores em sintonia com o momento do espetáculo, faz o público parecer crente a cada convite para erguer as mãos, cantar mais alto, bater palmas, sorrir. 

O sucesso de “AmarElo”, o show e o álbum, explica-se por alguns motivos. Emicida construiu um disco que evoca a ancestralidade, a naturalidade, a poesia, a resistência e a diversidade da música brasileira. É quase um manifesto desintegralista com 48 minutos de duração. Pois “AmarElo” tem participação de Fabiana Cozza, já comparada à Elis Regina; do pastor Henrique Vieira, que prega o amor antibárbaro (“paz não se constrói com tiro”); de Zeca Pagodinho, o maior boa praça do Brasil; de Dona Onete, nossa mãe do Norte; de Belchior, no conhecido sample de “Sujeito de Sorte” na faixa-título do álbum; e de Fernanda Montenegro, que lê a poesia “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Emicida, em sua pregação, nos oferece um retrato de um Brasil histórico, mas múltiplo, coeso em sua própria pluralidade.

O show começou com a providencial “A Ordem Natural das Coisas”, e não demorou um minuto para que o Guaíra inteiro se levantasse e não sentasse mais pelas próximas duas horas e dez minutos. Antes de “Quem Tem um Amigo (Tem Tudo)”, Emicida disse que aquela seria a música mais importante do show. A mais marcante. E foi assim. “Pequenas Alegrias da Vida Adulta” fez crescer o coro, nos balcões e na plateia. Em “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, o rapper mostrou sua força de pastor insuspeito, e destilou com vigor as rimas decisivas da música. “Metrópoles sufocam/ São necrópoles que não se tocam/ Então se chocam com o sonho de alguém/ São assassinas de domingo/ A pausar tudo que é lindo/ Todos que sentem isso/ São meus amigos também”.

Os vitrais da igreja de Emicida mudavam de cor com mais êxtase e velocidade. O jogo de luzes moldurava-se à atuação da banda, formação azeitadíssima, aliás. Julio Fejuca (baixo, cavaquinho, violão e programações), DJ Nyack, a espetacular Michelle Cordeiro (guitarra e violão), Silvanny Sivuca (bateria, bateria eletrônica e percussão infalível) e Thiago Jamelão (backing vocals).

Foi curioso ver a diversidade do público no Guairão, ao menos na sessão das 21h. Senhores com suas senhoras, piás em sua puberdade, muitos negros e negras, todos cantando rimas de um músico que lançou sua primeira mixtape em 2009, num tempo em que, de forma geral, rappers periféricos só dialogavam com a periferia. Num tempo em que outros problemas não eram nossos. Nesse sentido, Criolo começou o movimento natural de dar mais melodia ao rap, e Emicida o complementou. Talvez por isso, Emicida, já perto do fim do show, soltou essa: “Antigamente usava um óculos sem grau e vocês 'era meio embaçado'. Agora tá diferente. Vocês 'tão bonito'”. Deliciosa metáfora acidental.

O único porém foi o som do Teatro Guaíra. A mesa do DJ roubava a cena. Era bom sentir o grave no peito, mas quando Emicida falou diretamente com a plateia, ou quando o sample de Fernanda Montenegro foi acionado, o negócio tornou-se uma confusão embolada. Nada que macule a missa, o giro, a roda, que terminou com “Passarinhos”, hit de Emicida com participação de Vanessa da Mata e de todo o Guairão. “Será que o sol sai pra um voo melhor?/ Eu vou esperar/ talvez na primavera/ O céu clareia/ Vem calor/ Vê só o que sobrou de nós/ E o que já era.”