Narrativa linear e ingênua da necessária "Karaíba" tira seu potencial transformador 30/03/2023 - 15:24

Beto Pacheco

     

Encenada em duas sessões, na terça-feira (28) e quarta-feira (29), a peça "Karaíba" deve ser celebrada simplesmente por existir. Afinal, é a primeira vez, em 31 edições, que um espetáculo presente no Festival de Curitiba se vale quase exclusivamente de artistas e profissionais de produção indígenas. No palco, quatro atores se revezam, em um cenário cru, sustentado apenas pela iluminação, e com figurino enxuto, para contar a história adaptada do livro homônimo de Daniel Munduruku. 

Já no início da peça, uma das personagens faz uma ponte entre os lugares marcados nas cadeiras - ou seja, a poltrona garantida de cada espectador - e a demarcação das terras indígenas, cuja luta inglória segue nos dias atuais e é cada vez mais premente. Esse ponto é retomado ao fim da peça, quando eles entoam em um canto o dizer “Todo território brasileiro é terra indígena”. Inclusive, não há como assistir à peça sem estar ao lado de cada lamento, de cada pedido por justiça, de cada reparação devida aos povos originários dessas terras em que hoje se assentam os pés dos colonizadores, toda a tragédia causada por eles, e herdada por seus descendentes. 

Contudo, talvez seja esta a questão mais delicada. Afinal, como escrever uma resenha crítica livre, no que concerne a forma como se encena uma peça, sobre algo que é absolutamente legítimo e que deve ser defendido irmanamente por todos nós, com unhas e dentes? Difícil trato, mas o teatro, a arte, tem suas nuances. E o tema, por si só, é uma coisa; agora, como abordá-lo, sua linguagem e estética, é outra - mesmo que andem de mãos dadas, como a ciranda e as brincadeiras de criança simuladas logo nos segundos iniciais do primeiro ato.

Pareceu-me uma dramaturgia um pouco ingênua e didática demais. Claro, não podemos deixar de enfatizar que possa ter sido deliberada essa escolha, pois Munduruku, autor do livro "Karaíba", escreve obras mais dirigidas ao público infanto-juvenil. Mas creio que não era esse o público-alvo da noite desta quarta-feira (29), quando assisti ao espetáculo.

Valendo-se de uma narrativa expositiva, linear, apelando exclusivamente à imaginação da plateia, tendo como elementos de apoio movimentos corporais que respeitam a tradição, a voz de uma divindade que ecoa das caixas de som, além de alguns momentos de canto, faltou um pouco mais de inventividade e criação de pontos de surpresa para o espectador. Nada, de fato, surpreende. Pode até emocionar, principalmente por se tratar de tema tão fundamental e de artistas (com atuações honestas) cujas histórias de seus povos, e as suas próprias, foram quase apagadas por completo. Contudo, a narrativa em si, como foi desenvolvida, não é nada que um bom contador de história, livro em mão, não poderia fazer. 

E essa desconexão emotiva, ao menos causada em mim (vale ressaltar que o público em geral aplaudiu em pé, ao final), ficou mais evidente dada a riqueza da história. Pois ela pretende levar todos os presentes a um momento em que não se conhece - mas que deveríamos: um passado sem os registros escritos, mas com milhões de indivíduos, famílias, amores, guerras, tradições, brincadeiras, em suma, vidas, que devem estar nos registros do que se entende como o nosso passado. Uma Era pré-Cabral, 523 anos antes das caravelas. Imaginar os povos Tupinikin, Turyaçu e Anhangás que aqui viviam e vivem, seus conflitos e seu modos particulares de ver o mundo, é absolutamente primordial e deve ser uma luta de todos.