Série sobre tragédia da Boate Kiss vale mais pela impunidade que eterniza do que pela forma que a apresenta 30/01/2023 - 17:03

Cristiano Castilho

Produções culturais que tratam de tragédias reais, caso da série “Todo Dia a Mesma Noite”, em cartaz na Netflix, correm um risco natural de suscitar dúvidas sobre sua real intenção. Há a chance de romantizar uma catástrofe, a de não ser justo com as memórias de quem morreu ou ficou. Ou, neste caso, de eternizar uma certa impunidade à brasileira. A minissérie de cinco capítulos escrita e dirigida por Julia Resende e Carol Minêm estreou em meio a um marco: os 10 anos do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), catástrofe evitável que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos – e nenhum preso até este janeiro de 2023.

A série é baseada no livro homônimo da jornalista Daniela Arbex - também autora do premiado “Holocausto Brasileiro”, este sobre o genocídio ocorrido no Hospital Psiquiátrico de Barbacena (MG), em que mais de 60 mil pessoas morreram ou foram mortas. O pano de fundo, portanto, é uma pesquisa densa, cheia de relatos, documentos e consequências, inclusive políticas, por parte dos envolvidos.

Paulo Gorgulho, Bianca Byington, Leonardo Medeiros, Debora Lamm e Thelmo Fernandes encarnam os pais de algumas das vítimas. A noite de 27 de janeiro de 2013 - da festa de aniversário de uma das garotas até o início do fogo - domina o primeiro episódio. A direção é confusa e apressada. Os personagens, principalmente os filhos, soam inverossímeis em sua relação familiar. O texto é ruim, e há passagens bucólicas, a cavalo inclusive, que tentam provar rapidamente que uma mãe ou um pai ama o seu filho e vice-versa. O sotaque gaúcho desmesurado e onipresente também colabora para o tom artificialesco de uma história que abalou um país inteiro e não precisa de adornos. Mas “Todo Dia a Mesma Noite” se transforma a partir das implicações da tragédia, e apresenta de maneira progressiva ao espectador um cheiro conhecidíssimo de impunidade.

É providencial que no último episódio o personagem de Thelmo Fernandes cite o escritor tcheco Franz Kafka para tentar explicar o inexplicável. “No Brasil, a pena é o processo. E o processo é a pena”. A série aborda a criação da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, uma tentativa de oficializar e o organizar o luto coletivo, em busca de justiça. “Todo Dia a Mesma Noite” quase vira uma “série de tribunal” quando a associação ganha representatividade, começa a fazer investigações por conta e a duvidar da competência dos promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

A série de equívocos que levariam os réus (sócios da boate, músicos da banda, seguranças do bar, técnicos do corpo de bombeiros, secretários da prefeitura) a serem julgados por crime doloso, quando o agente prevê o resultado de suas ações e mesmo assim as leva adiante, são escancaradas durante toda a série. Porém, os primeiros processados, anos depois da tragédia, foram os pais das vítimas, sob acusação de calúnia e difamação a membros do Ministério Público.

Em maio de 2013, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) revogou a prisão preventiva dos quatro acusados por unanimidade, que passaram a responder ao processo em liberdade. Em dezembro de 2021, o Tribunal do Júri mais longo da história do Rio Grande do Sul condenou quatro pessoas por dolo eventual. Em agosto de 2022, o TJ-RS anulou o julgamento, sob alegação de nulidades no processo. Todos os réus estão soltos.

“Todo Dia a Mesma Noite” é forte e necessária mais pelo conteúdo que resgata do que pela forma que utiliza. Sentimentos de indignação e revolta permeiam os capítulos, que chegam a um labirinto jurídico deliberado justamente no episódio derradeiro, chamado “Sem Fim”.