Surpreendente, "Square" leva público a experimentar a cidade de modo original, com espetáculo de sons, encontros e sentimentos 31/03/2023 - 16:20

Beto Pacheco

     

A estreia mundial da peça Square (Praça), da companhia de teatro holandesa Wunderbaum - com o acréscimo de diversos atores brasileiros para esta sessão, era muito aguardada, porém, estava cercada de curiosidade. Afinal, nem os próprios atores, dessa que é uma das principais atrações do Festival de Curitiba, conseguiam, nas coletivas, explicar exatamente como seria a experiência. O fato é que é realmente difícil traduzir em palavras, afinal, além de ser um espetáculo para ser assistido, é para ser ouvido e sentido. 

Apresentado na Praça Santos Andrade, com acesso gratuito, ele toma todo o espaço, misturando elenco com os transeuntes. A plateia acompanha tudo das escadarias da Universidade Federal do Paraná (UFPR) usando fones de ouvido (apenas 100 foram distribuídos aos primeiros que chegaram - o que se encerrou uma hora antes do início da peça).  

Lembrando que ela ainda terá uma última sessão neste sábado (01/04), às 16h.

Os fones isolavam todo o som externo e duas notas espaçadas começaram a tocar neles: tu-tum, tu-tum. Foi assim que a peça teve início, sem aviso prévio. Então, era a praça à nossa frente, pessoas indo para lá e para cá, árvores, estátuas… e as duas notas. Foi quando nos demos conta de que uma pessoa caminhava à frente, com o mesmo tipo de fone que nós usávamos. Era um ator (Jens Bouttery, Bélgica). E percebemos que as notas eram tocadas a cada passo que ele dava. Assim fomos entendendo que ele seria o fio condutor e que os ritmos dos seus passos seriam a trilha e desenvolveriam a dinâmica em que a peça se desenrolaria.

Parece simples, mas o fato de aquilo estar acontecendo ao vivo, sincronizado em tempo real - um DJ tocava as notas da mesa de som -, com apenas aqueles 100 espectadores, com seus fones, tendo as ferramentas para compreender, dava um ar de estranheza e um quê de conexão emotiva difícil de explicar. Acho que não estamos acostumados a ouvir o nosso entorno, envoltos nas brumas do dia a dia e do turbilhão de compromissos e informações. 

Mas não ficaria por aí. Eram mais de 30 atores “em cena”, espalhados por toda a praça, e fomos descobrindo aos poucos quem era artista e quem era apenas alguém que, alheio ao que acontecia, rumava para casa, voltava do trabalho, da escola ou só passeava. Alguns dos atores carregavam microfones escondidos e começamos a acompanhar o que se passava em diferentes cantos da praça. Conversas aleatórias, conversas ensaiadas, conversas paralelas, o barulho de uma bola de basquete. A cada som, um jogo de esconde-esconde se dava, pois tínhamos que achar de onde ele vinha. E ao encontrar, a história se iluminava. 

 

A VIDA E SEUS DILEMAS EM MEIO À PRAÇA

Em certo momento, aquele ator do início, o belga, sacou duas baquetas e começou, literalmente, a “tocar a praça”. Batucava nas estátuas, na grama, nas árvores, nas lixeiras. A conexão com quem assistia aconteceu naturalmente, afinal, o tambor é nossa comunicação ancestral. Enquanto ele tamborilava praça afora, Plá, sim, ele mesmo, o trovador das ruas curitibanas, chega de bicicleta e vai lá conversar com o batuqueiro. “I don’t speak portuguese”. Você se lembra, só nós, os 100, ouvíamos a conversa. E Plá responde: não importa, a gente se conecta pela música. E ele toca sua canção, cujo refrão passa a ser cantado pelos 100 privilegiados em uníssono, repetidamente: “Mais bicicletas, menos carros!”. O restante da praça, os sem fones, nos olhava sem entender nada 

Portanto, os temas que nos são caros iam aparecendo de forma inesperada - como a música feita ao se andar e a aparição de Plá. Em outro momento, uma personagem, a guia turística, explicava a seis turistas, todos atores, que a praça teria 11 estátuas, sendo nove de homens. As mulheres? A professora Júlia Wanderley e a atriz Lala Schneider

Só fui aprender com a peça que elas estavam lá, em busto.

 

IMPROVISO E EMOÇÕES

Mas o momento mais emocionante foi quando uma mãe e sua filha, por volta dos oito anos de idade, entraram sem querer em cena. Um dos atores, o carioca Pedro Uchoa, ficou o tempo todo segurando placas com dizeres. Muitas delas com clichês da internet, como “essa reunião poderia ser um e-mail” ou “coloquem mais cheetos no pacote” - e juro que senti cheiro de cheetos quando li. Possivelmente era meu cérebro super estimulado àquela altura me pregando um truque. Algumas placas tinham recados pontuais, inclusive satirizando nosso mundo impregnado de “coachs”. Um deles dizia: “Pare de me perguntar onde me vejo em cinco anos”. Mas a placa que chamou a atenção daquela garotinha e sua mãe foi sobre os nossos corpos e as imposições dos padrões de beleza, e nela estava escrito: “O corpo padrão não é o padrão”. O ator Pedro perguntou o que a menina, negra, cabelo black, com uma fita a enfeitá-lo, achava do corpo dela. E ela, sem saber que ele estava microfonado, respondeu “eu acho lindo”, e prosseguiu de maneira espontânea: “na minha escola, algumas meninas da minha sala querem alisar o cabelo, mas eu não. Eu amo o meu cabelo”. 

A plateia explodiu em aplausos. A pequena “atriz por um minuto” se assustou de início, pois não sabia que estava fazendo parte do espetáculo àquela altura. Mas, mesmo tímida, deu um tchauzinho para o público, que retribuiu. 

Ao fim, descobrimos, em relatos em nossos ouvidos, quem eram aquelas pessoas a que assistimos. Atores, profissionais e amadores, locais. Suas histórias com a praça nos eram reveladas e eles levantavam as mãos para ligarmos a narração ao personagem. Contive lágrimas teimosas.

O desfecho, então, não poderia ser mais apropriado, com a mais tradicional festa de ocupação das ruas que este país promove. Dois grupos de fanfarras se encontraram em meio à praça, com integrantes da Bananeira Brass Band e outros músicos da cidade, para formar um grande bloco de carnaval. Foi quando tiramos os fones e saímos daquele mundo fantástico, retornando à realidade. Ao menos, a uma realidade carnavalizada. 

 

FICHA TÉCNICA

Companhia Wunderbaum. @acteursgroep_wunderbaum

Criação e Performance: Jens Bouttery, Maartje Remmers, Marleen Scholten, Monique Vaillé, Pedro Uchoa e Walter Bart. Músicas: Jens Bouttery. Técnico de Som: Jens Bakker. Direção de Produção: Linda Visser. Produção Brasil: Lud Picosque, Monique Vaillé, Pedro Uchoa e Corpo Rastreado. Realização: Acteursgroep Wunderbaum. Co- realização: Theater Rotterdam. Apoio cultural: Consulado dos Reinos dos Países Baixos

 

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