Vanguardista incontrolável, Hermeto Pascoal completa 86 anos de vida e música (e vice-versa) 22/06/2022 - 13:30
Era novembro de 2014. O país ainda tentava entender aquele 7 a 1, fenômeno catastrófico, mas simbólico, que deveria ter revolucionado o futebol brasileiro por dentro e por fora. Mas Felipão ainda é um técnico de série A e a CBF, nestes 7 anos, teve um presidente que cumpriu prisão domiciliar nos Estados Unidos (José Maria Marin), um sucessor detido na Suíça em investigação liderada pelo FBI (Marco Polo Del Nero) e outro, eleito para assumir a presidência da entidade até 2023, suspenso e afastado devido a assédio moral e sexual cometido contra funcionárias da entidade. Lá vinha o Brasil, descendo a ladeira.
A cama do reizinho
O binóculo retrospectivo ganha ares de normalidade, de genuína brasilidade, quando lembro da terceira edição do Pelotas Jazz Festival, realizado no sul do sul do país em novembro daquele ano. Saca o time: Richard Galliano, João Bosco, Trio Corrente, Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Arismar do Espírito Santo e Hermeto Pascoal. Se houve alegria nas pernas em algum momento, foi por lá.
O palco estava montado numa das ruas do centro da cidade gaúcha. Antes das apresentações, a plêiade de artistas trocava figurinhas com a imprensa convidada. Havia uns quitutes, uns rabos-de-galo, tudo num clima informal e privilegiado – tomei um suco de caju com Naná, inesquecível. Mas o assunto aqui é Hermeto Pascoal, sinônimo de música viva, que completa 86 anos neste 22 de junho.
As coletivas de imprensa, por assim dizer, se realizavam no Museu do Doce da Universidade Federal de Pelotas, cuja sede ocupa um casarão erguido em 1878. No espaço, além da história de iguarias gaudérias, havia objetos e utensílios que contam um pouco da trajetória do estado e da cidade da família Ramil. Num cantinho havia uma cama pomposa, enorme, de ferro, pertencente a alguma autoridade distinta da qual não me lembro.
A prosa corria solta com Hermeto Pascoal, que bebericava sua taça de vinho, até que ele, de repente, disse: “o véinho tá cansado”. Num átimo, atirou-se sobre a cama como se fosse testar um colchão d’água. Queria descansar, ora bolas. O estrado – provavelmente não usado desde o século 19 – quebrou-se como um mirabel, os pés do leito se retorceram, o povo todo olhou aquele albino genial afundado na madeira acupinzada, e ouviu-se um baixinho “eita nóis, quebrei a cama do reizinho”. Não se sabe se era do reizinho, tampouco o prejuízo causado à instituição com o catre em pandarecos.
Porcos, chaleira e Curitiba
O alagoano autodidata já era o melhor acordeonista do agreste aos 15 anos, época em que tocava para os passarinhos. Não sabia ler música, porque era a música que o procurava. Na década de 1960, Hermeto fundou o explosivo Quarteto Novo - com Airto Moreira na percussão, foi o grupo que acompanhou Edu Lobo na apresentação vencedora do Festival de MPB da TV Record, com a música “Ponteio” - e também lançou “O Ovo”, sua marca maior, em parceria, quem diria, com Geraldo Vandré. A genialidade arrebatadora e a musicalidade incontrolável o levaram rapidamente aos Estados Unidos, onde gravou com Miles Davis em 1970. Chick Corea e Stan Getz suplicavam por uma canja.
Seu primeiro álbum, no ano seguinte, trouxe garrafas de vidro como percussão. E Hermeto é um pouco disso: desconstrução contínua – lembro também de que ele “toca” piscina, chaleira e porquinhos de borracha. Sua habilidade em transformar coisas em música, como se fosse alquimia, lhe rendeu o apelido de bruxo. Um bruxo que, apesar da genialidade vanguardista incontrolável, que faz com que sua música seja “difícil”, sempre resguardou as melhores tradições. São dele, por exemplo, versões incríveis de “Asa Branca” e “Carinhoso”.
Hermeto Pascoal morou em Curitiba por 12 anos. Dividiu vida e música com a cantora Aline Morena (era o duo Chimarrão & Rapadura). Neste período, finalizou em livro um projeto ambicioso: o seu “Calendário do Som”, que consistia em gravar uma música por dia em um ano (de 1996 a 1997). É que a música não dá conta de Hermeto Pascoal.
Por estes dias, Hermeto estava na Europa, em turnê. Seu som inclassificável é quase sempre o apogeu de grandes festivais de jazz por lá, de Montreaux a San Sebastián.
Por aqui, Hermeto Pascoal apura sua musicalidade transgressora, que não cabe em gênero. Aliás, poderia ser a fusão de tudo um pouco. Piazzola com Miles Davis, Dominguinhos com um tiquinho de Thelonious Monk, Cannonbal Adderly em prosa com Pixinguinha. Não à toa, o aniversariante do dia refere-se à sua música como “universal”. Pois é quase capaz de fazer a cama do reizinho soar em si bemol.