Vera Holtz, Harari, nosso passado e futuro em cena... com humor, a melhor das ficções 07/04/2023 - 11:59

Beto Pacheco

     

Vera Holtz sobe ao palco do Guairão, lotado, em um cenário que simula uma caverna. Afinal, ela nos levará a uma viagem pela obra de Yuval Noah Harari, o popstar da literatura de não-ficção contemporânea, e o seu best-seller “Sapiens - uma breve história da humanidade". Curioso, pois, apesar de ser um livro de "não-ficção", a peça, e boa parte do livro, tratam de "Ficções". Inclusive, este é o título do espetáculo.  

Quais ficções? Todas aquelas que nós, Sapiens, desenvolvemos ao longo de nossa evolução. Coisas que não existem na natureza, que foram criadas pela nossa cabeça. Exemplos: dinheiro, estados, pessoa jurídica e deuses. Tenho o livro. O li e já está nos planos reler, agora anotando e rabiscando (espero que o deus dos livros, mesmo que inventado, me perdoe). Minha curiosidade, ao chegar ao Teatro Guaíra, onde a peça foi encenada durante a 31ª edição do Festival de Curitiba, era descobrir como Vera traduziria no palco aquelas páginas. Contudo, tinha para mim que seria algo relativamente plausível, afinal, o texto de Harari é ágil, repleto de aforismos e condensa pensamentos complexos, extensos, em poucas páginas e de forma absolutamente acessível. Em suma, um prato cheio para uma grande artista desenvolver esquetes interligados entre si. 

E assim foi, mas com algumas sacadas dramatúrgicas interessantes, pois não é um monólogo da atriz, digamos, lendo o texto. Não. Quem narra cada momento são personagens importantes e centrais no livro de Harari: o trigo, o elo perdido, um asno, e por aí afora. O asno, por exemplo, aparece como um acadêmico dando uma palestra sobre seus pares. É quando Vera explica à plateia, ao menos àquela parte que não leu o livro, como funcionará a dinâmica entre as espécies. Por exemplo, o impacto de asnos e cavalos serem relativamente parecidos, mas de espécies diferentes, e buldogues e galgos ingleses serem absolutamente diferentes, mas da mesma espécie. Inclusive, "revela", para estupefatos Sapiens que, em dado momento da História, seis diferentes espécies de “homos” teriam convivido neste recôndito planetinha.

E o que aconteceu com eles? Por que só nós, Sapiens, seguimos por aqui? Pois é…

Intercalando petardos de informação, em meio a ironias e nuances de atuação, Vera nos coloca contra as cordas, nos fazendo lutar entre o prestar atenção a cada ato da encenação e ficar com a mente borbulhando em porquês. 

Em cena, ela tem o auxílio luxuoso do músico italiano Federico Puppi e seu violoncelo. Ele é o contraponto, “o” escada, a trilha e interage com o público. Um alívio para a atriz, que desenrola sem pestanejar, ao longo de 85 minutos, um texto enorme, complexo, com variantes dramáticas e cômicas. 

Apesar de ter uma grande pedra no meio do palco - no meio do palco ter uma grande pedra (que de forma semiótica, mudando de posição e forma, pontua os diferentes atos) é a atuação de Vera o grande “tchan” do espetáculo. Ela nos faz rir logo de cara, quando negocia com a plateia aplausos, usando de moeda de troca o ato de mostrar os peitos. O que, logo em seguida, se descobre ser uma ficção; e nos faz chorar e a aplaudir efusivamente ao desenrolar uma lista de tragédias, agressões, abusos e sofrimentos vividos pelas mulheres ao longo de milênios e gritando, com os olhos faiscando, ao final “E isso não é ficção!”.

Se há um “senão” em toda a montagem, é quando ela “gasta” alguns minutos em cena numa improvisação vocal acompanhada por Puppi ao cello. Pareceu-me sem propósito e, se havia, confesso, não pesquei. De resto, “Ficções” merece vida longa, mais longa que nossa passagem pelo topo da cadeia alimentar. Afinal, ao que tudo indica, ela está com os dias contados graças a nós mesmos e nosso afã de, ao bailar com as pesquisas de Inteligência Artificial (IA), criarmos um híbrido, uma “nova espécie”, que poderá fazer conosco o mesmo que aconteceu com nossos primos “homos”. Aqueles, os que desapareceram da face da Terra. Mas isso fica para “Homo Deus”, o outro livro do Harari, e, quem sabe, uma nova peça… Tomara que dê tempo.