“As mil e uma noites” com pitadas de Hunter Thompson: 92 anos de vida e luta de Tony Tornado 26/05/2022 - 12:33

Beto Pacheco

Tony Tornado completa hoje 92 anos e as histórias que viveu mais parecem ter saído de um compêndio de “As mil e uma noites”,  com pitadas de Hunter S. Thompson. Para ser mais preciso, 33.580 noites frenéticas (fora os bissextos) a 220 km por hora. Mas respeitando o “método Ruy Castro” de se fazer biografia, vamos evocar a ancestralidade primeiro. Para início de conversa, dois fatos sobre o pai de Tony, Ray Antenon, nascido na Guiana: ele foi escravizado na juventude e sobreviveu ao massacre da seita de Jim Jones. Pois é, dá uma respirada aí e venha comigo nesta montanha-russa. Essas histórias foram contadas recentemente, em 2020, por Tornado num bate-papo no talk show de Eduardo Sterblitch, na GloboPlay

Antenon chegou ao Brasil ainda muito pequeno, como pessoa escravizada e, por mais que tenha nascido pós Lei Áurea, alguns donos de fazendas no interior de São Paulo ainda mantinham modelos escravistas até a segunda década do século XX (e basta assistir aos jornais para ver, nos dias de hoje, senhoras de 70 anos sendo libertadas em “casas de família” nas grandes cidades brasileiras). "Meu pai era alugado pelas fazendas para fazer filhos. Era um reprodutor", contou Tony. Desse modo, fica difícil dizer quantos irmãos o cantor e ator Tony Tornado terá espalhados por aí. Anos mais tarde, Antenon voltou à Guiana e participou da seita Templo dos Povos, cujo fundador e líder, Jim Jones, promoveu, em novembro de 1978, o suicídio/assassinato de 918 de seus membros por envenenamento. Ray Antenon saiu dessa vivo. 

A essa altura da jornada, Tony Tornado, registrado ao nascer Antônio Viana Gomes, já havia fugido de casa aos 12 anos de idade (1942, para o leitor se localizar), indo morar nas ruas do Rio de Janeiro; aos 18, servido na Escola de Paraquedismo de Deodoro, ao lado do recruta Senor Abravanel - sim, o Silvio Santos; participado, como relatou a Pedro Bial em entrevista, do conflito bélico no Canal de Suez, em 1957 no Egito (mais de 6 mil brasileiros fizeram parte de uma das primeiras “missões de paz” da ONU); iniciado a carreira artística, na década de 1960, com o nome artístico Tony Checker, dublando músicos americanos no programa de Jair de Taumaturgo; morado em Nova Iorque, onde conheceu Tim Maia (o que não deve ter sido água com açúcar para as autoridades americanas); e vencido, em 1970, a fase brasileira do V Festival Internacional da Canção, em um ginásio Maracanãzinho abarrotado, com o soul "BR-3". Ufa!

Há um crime
No longo asfalto dessa estrada
E uma notícia fabricada
Pro novo herói de cada mês

Aliás, esse é um dos momentos emblemáticos que o transformaram em um dos ícones da soul music no Brasil. “Eu era a ‘zebra’ naquele festival”, disse em entrevista a Marcos Mion (veja mais abaixo). Mas Tony foi além…

Dos Estados Unidos trouxe na bagagem a luta pelos direito civis. Em 1971, assistia ao show de Elis Regina, no mesmo Maracanãzinho. Quando ela cantou "Black is Beautiful", nosso herói invadiu o palco e levantou o punho no gesto marcado pelos Panteras Negras (grupo que surgiu em 1966 nos Estados Unidos para confrontar a opressão sofrida pela população negra), recentemente recuperado pelo movimento “Black Lives Matter”. Eram tempos do regime de ferro, de ditadura militar. Resultado: Tony saiu do palco algemado e, segundo suas contas, foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, mais umas nove vezes. Fatos que também acarretaram em seu exílio. Morou, forçadamente - para se proteger -, no Uruguai, Coreia do Norte, Angola, na antiga Tchecoslováquia, Honduras e Dinamarca.  

Ah, sim, e foi casado com a atriz Arlete Salles

Em 1986, gravou videoclipe com Mick Jagger (tem no YouTube, mas já aviso: não é, definitivamente, das passagens mais memoráveis do líder dos Stones), mas foi na televisão que brilhou realmente, em especial na minissérie “Agosto”, de 1993, baseada no homônimo romance histórico escrito por Rubem Fonseca. Nela, interpretou de forma inconteste Gregório Fortunato, o "Anjo Negro", chefe da segurança pessoal do presidente/ditador Getúlio Vargas. Eu era adolescente, mas me lembro de assisti-lo e ficar embasbacado com sua presença em tela. Sua trajetória está presente em cerca de 30 filmes e 40 programas televisivos (entre séries, novelas e humor). 

Em abril passado, Tony participou do programa Caldeirão (Rede Globo), de Marcos Mion, e “derrubou” a internet quando a juventude dionisíaca começou a ser informada de que aquele portento que cantava “BR3” tinha lá seus 92 anos de idade. Ele entrou e fez o mesmo tradicional gesto dos Panteras Negras. No fim da canção, relembrando outra, “Juízo Final”, e deixando explícito que sofrer racismo foi algo que, infelizmente, permeou a sua vida, e consequentemente a sua luta, aquela voz de trovão ecoava: “Bebedouro mata a sede, não escolhe cor” e completou: “Quando duas mãos se encontram, refletem no chão a sombra da mesma cor”.

Um exemplo de que, até o fim, independente do tempo, do meio e do alvo, calar-se não é uma opção.