A voz encantada de Jamelão 12/05/2022 - 09:47

Beto Pacheco

 

Hoje, 12 de maio, é dia de celebrar a chegada à vida de uma das maiores vozes do Brasil, mas é a sua partida que ajuda a dar a dimensão de sua obra. Quando faleceu, em 2008, o carioca José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão (1913-2008), o rei dos intérpretes de samba-enredo, fez o seu último desfile apoteótico. Literalmente. Após o velório na quadra da sua amada Estação Primeira de Mangueira, seguindo sentido ao cemitério São Francisco Xavier, na Zona Portuária do Rio, o caminhão do Corpo de Bombeiros que se fazia de alegoria para o seu caixão parou em frente aos portões da Marquês de Sapucaí - o Sambódromo. Com o rufar da bateria “Surdo Um”, como se fosse um enredo de “As Mil e Uma Noites” e alguém dissesse “Abre-te Sésamo”, eles se abriram. Jamelão partiu pela última vez da concentração rumo à dispersão, sendo celebrado por uma vida que, entre altos e baixos, exaltações e frustrações, recebeu, em ritmo, harmonia, melodia e potência, sempre notas 10.

O cantor é uma das bandeiras da segunda maior vencedora do carnaval do Rio de Janeiro, com 20 títulos (a Portela é a maior, com 22… Mas lá temos Paulinho da Viola, está tudo bem). Nosso aniversariante esteve presente em 14 desses títulos (em 12 como a voz principal, a partir de 1952), após substituir outra lenda: Xangô da Mangueira. Jamelão é pilar tão fundamental da Estação Primeira que, em 2022, na volta das escolas à avenida pós-pandemia, foi finalmente homenageado como samba enredo. Mais: como uma das almas dessa história. Intitulado “Angenor, José & Laurindo”, o desfile enalteceu em verde e rosa a poesia de Cartola, o canto de Jamelão, e a dança de Mestre Delegado

Só sei que Mangueira é um céu estrelado

Não é brincadeira, sou apaixonado

A Estação Primeira relembra o passado

Valei-me, Cartola, Jamelão e Delegado

Como disse anteriormente, Jamelão é (não creio que neste quesito deva ser descrito no pretérito) uma das grandes e marcantes vozes da música brasileira - em toda a sua extensão. Inclusive, foi responsável por trazer reconhecimento e respeito ao seu ofício, que eventualmente ainda é denominado como ‘puxador de samba’. “Não sou puxador. Não puxo carro, não puxo droga, nem puxo saco de ninguém. Sou intérprete de samba-enredo!”, esbravejava.

Intérprete cujo amor original pelo carnaval veio da mãe, Dona Benvinda, que desfilava na Escola de Samba Deixa Malhar, do Engenho Novo. O apelido ‘Jamelão’ lhe foi dado no tempo em que era crooner na gafieira Jardim do Meyer, um dos muitos endereços pelos quais desfilou seu talento. Foi levado à Mangueira pelo lendário compositor Gradim. Nela, iniciou na bateria, tocando tamborim. Depois se interessou em aprender cavaquinho, mas era nas cordas vocais que estava o impressionante talento. No final da década de 1940, começou a gravar discos - após passagens por programas de calouros nas rádios - e foi vocalista da icônica Orquestra Tabajara

Jamelão também é reconhecido como o principal intérprete da obra do gaúcho Lupicínio Rodrigues. As gravações dos sambas-canção “Esses Moços”, “Ela disse-me assim” e “Vingança” tornaram-se clássicos em sua voz. Sobre esta última, uma curiosidade. Segundo o jornalista e escritor Eduardo Bueno, com a composição de “Vingança” (1951), “Lupicínio escreveu ‘Like a Rolling Stone’ 14 anos antes que Bob Dylan”. Um chiste, ou não, ouça na voz de Jamelão a letra que diz:

Você há de rolar como as pedras

Que rolam na estrada

E Jamelão não usava sua voz apenas para cantar, como se viu nos embates contra o termo 'puxador'. Por ela, expressava-se. Tinha na ponta da língua os sambas defendidos na avenida que lhe emocionaram. Em especial “O mundo encantado de Monteiro Lobato” (1967), “No reino da Mãe do Ouro” (1976) e “Mangueira mostra ao mundo o que Dorival Caymmi tem” (1986). Porém, quando achava necessário, o mestre criticava a própria escola, sempre em busca da excelência. Ao ser perguntada certa feita sobre o célebre “Cem anos de liberdade... Realidade ou ilusão?”, Jamelão disse que “O samba era bom, mas poderia ser melhor elaborado”. 

Como questionar, neste caso, a opinião de um homem que nasceu apenas 25 anos após a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel? Ainda mais com todas as contradições possíveis em relação à essa passagem da História, que não cabem aqui análise mais profunda. Mas pensemos: o que ele passou, principalmente em sua juventude? Mais: o que sofreram seus pais, seus avós? A vida é o retrato de uma trajetória, mas o que sustenta a moldura está por trás. Em relação ao grande samba de 1988, talvez ele estivesse refletindo que, mesmo com a letra incisiva, ainda fosse pouco.  

Será 

Que a Lei Áurea tão sonhada 

Há tanto tempo assinada 

Não foi o fim da escravidão? 

Hoje dentro da realidade 

Onde está a liberdade?

Onde está que ninguém viu?  

Aproveito, por fim, para dedicar este texto ao meu pai, Paulo Roberto Pacheco, que adora Jamelão - o dos discos e o da avenida. Ele me fez amar o samba e torcer pela Estação Primeira de Mangueira. No próximo domingo, 15, será seu aniversário de 74 anos e, graças à arte de nomes como o de José Bispo Clementino dos Santos, é que podemos seguir nesta avenida de sonhos, contra as intempéries dos carrascos e dos capitães do mato, vibrando com baluartes e reflexos da cultura brasileira, em verde e rosa, todos nós, até mesmo quem já morreu.