“Barbie” é aventura nostálgica e inteligente que nivela o cinema comercial por cima 25/07/2023 - 14:33

Felipe Worliczeck*

Tendências nem sempre são benéficas, tampouco devem ser seguidas. Greta Gerwig reconhece isso com inteligência e ousadia no filme “Barbie” (2023), seu terceiro e mais caro longa (U$ 145 milhões de orçamento), ao optar por uma direção saudosista em uma narrativa que é tanto surreal quanto existencial (veja trailer abaixo).

“Barbie” afasta-se das convenções de blockbusters contemporâneos quando rejeita o falso realismo que essas obras propõem. Filmes como “Oppenheimer” (2023) - leia crítica aqui - utilizam-se de elementos estéticos como uma paleta de cores dessaturada para criar verossimilhança, na esperança que isto se traduza em qualidade artística. No longa de Greta Gerwig, a maior parte das histórias acontece em um mundo metafórico e lúdico, em que uma das versões da famosa boneca (Margot Robbie) parte em busca de respostas sobre suas inquietações no mundo real acompanhada de um Ken (Ryan Gosling) que a ama sem ser correspondido. 

“Barbie”, portanto, se parece mais com os filmes de comédia da Hollywood clássica, em especial os musicais estrelados por Gene Kelly como “Cantando na Chuva” (1952) - filme que inspirou a diretora, conforme entrevista ao Letterboxd, rede social voltada para fãs de cinema. 

A escolha de cenários pitorescos no lugar de computação gráfica, aliado a um filme praticamente ausente de cenas de ação e a um roteiro que segue a jornada do herói, estrutura narrativa importada das teorias literárias para o cinema (trabalho do roteirista Christopher Vogler), são exemplos claros desse resgate do cinema americano clássico.

Além disso, o filme não se esquece de questões contemporâneas em sua narrativa, como o impacto de produtos culturais na formação da identidade e, neste caso, da identidade feminina. Apesar do espanto de certos segmentos da sociedade, isso é esperado pela mesma diretora de “Lady Bird: A Hora de Voar” (2017) e “Adoráveis Mulheres” (2019), longas em que a perspectiva feminista atravessa a obra. 

Apesar disso, Greta Gerwig também tangencia temas relacionados à masculinidade de maneira inteligente, como a negação de sentimento e validação pela performance por meio da sátira, utilizando as diferentes versões de Ken como alívio cômico para a obra. O filme também é autoconsciente da ironia ao utilizar a imagem de Barbie para criticar a pressão social e estética impostas às mulheres. Ao se apropriar de um recurso metalinguístico dentro de sua própria narrativa, "Barbie" discute temas como consumismo, indústria cultural e objetificação dos corpos pelo sistema econômico por meio da quebra de convenções do cinema.

Para isso, a diretora escolhe diferentes abordagens na linguagem cinematográfica ao longo do filme para quebra de expectativas, intercalando de uma cena inspirada no cinema surrealista para conversas mundanas entre os personagens, por exemplo. 

A própria Mattel, produtora do filme, é satirizada pela sua composição majoritariamente masculina, com construções de cenários e cinematografia que remetem a filmes como “Playtime - Tempo de Diversão” (1967) de Jacques Tati, ao mesmo tempo que constrói cenas intimistas com os conflitos da Barbie e de seu corpo literalmente plastificado.

Apesar de a fragmentação de Greta Gerwig funcionar, alternando entre o drama e a comédia, é inevitável que a maleabilidade de sua forma torne o filme inconstante em sua qualidade. Ele, porém, varia entre boas cenas e momentos de genialidade, como na cena em que diferentes "Kens" dançam, utilizando-se do ritmo e da disposição corporal dos atores em cena a seu favor para avançar a narrativa.

A aposta de Gerwig ao nadar contra a correnteza mostra-se bem sucedida pelos números na bilheteria: foi a terceira maior estreia da história do Brasil nos cinemas, atrás apenas de dois filmes de super-heróis: "Vingadores: Ultimato" (2019) e "Homem Aranha: Sem Volta para Casa" (2021); e a maior estreia de uma diretora nos Estados Unidos, com uma arrecadação de U$ 337 milhões mundialmente quatro dias após sua estreia, contribuindo para a quarta maior bilheteria de abertura na história dos Estados Unidos, ao lado de "Oppenheimer".

“Barbie”, portanto, é a prova de que o cinema comercial pode ser mais do que nos é proposto nos dias de hoje, estilística e narrativamente. Com complexidade e leveza, o mosaico que Greta Gerwig constrói inova justamente por saudar elementos estéticos do cinema clássico em sua narrativa multifacetada. Bonecos (e bonecas), enfim, fazem parte da nossa infância e têm suas implicações ao longo de nossas vidas, mesmo que mascarem de cor-de-rosa um mundo que constantemente nos mostra sua paleta cinza.

*Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho