Realidade e ficção se misturam em “Primeira Pessoa do Singular”, novo livro de Haruki Murakami 05/07/2023 - 17:06

Felipe Worliczeck*

Desventuras cotidianas tornam-se narrativas épicas na mão do escritor japonês Haruki Murakami em seu livro “Primeira Pessoa do Singular”, lançado no Brasil pela editora Alfaguara. O pronome pessoal que dá nome ao livro, “eu”, é justamente o centro da narrativa, que conta a história de Murakami por meio de oito contos e crônicas, transitando entre o trivial e surreal. 

As principais marcas do autor, como suas referências aos Beatles e jazz, são explicadas em histórias que narram sua infância e começo de carreira, em um Japão que se ocidentalizou após a Segunda Guerra Mundial. Uma de suas crônicas, por exemplo, narra a obsessão que Murakami tinha pelos times japoneses de beisebol. 

O poder de síntese do escritor é evidenciado em cada conto, em uma escrita que apenas aparenta simplicidade, falando muito com poucas palavras. Essa característica torna a leitura de fácil digestão e atenção, prendendo-nos em narrativas aparentemente tediosas, como no dia em que Murakami levou "um bolo" de uma conhecida, história presente no capítulo “Nata”. Murakami, além de todos esses aspectos, é conhecido pelo uso do realismo mágico, gênero popularizado por escritores latinos ao contar histórias em que o fantástico é visto como ordinário. O autor utiliza este elemento para acentuar seus pensamentos existencialistas sobre a vida, como no conto “A confissão do macaco de Shinagawa”, em que um primata falante conta as histórias da sua vida. 

O livro, portanto, torna a coletânea de textos uma obra de narrador não-confiável, similar neste sentido à “Dom Casmurro” (1899), de Machado de Assis. Isso, porém, faz sentido na vida de um escritor incapaz de dissociar o real da ficção, usando a literatura como sua válvula de escape da realidade. Ao cavar de si mesmo a inspiração para a obra, Murakami também não esconde os preconceitos que acompanham seu corpo de trabalho, como a misoginia. Praticamente todas as obras do livro contam, de alguma forma, a relação conturbada do escritor com as mulheres que passaram por sua vida. 

Em sua maioria, as personagens femininas são pouco desenvolvidas, quando não ofendidas, como na história "Carnaval", dedicada à mulher menos atraente que Murakami conhece, segundo suas próprias palavras. Apesar do gosto amargo que sua relação com mulheres deixa ao leitor, ela é resultado de uma decisão consciente do escritor em evidenciar seus preconceitos enraizados, em vez de escondê-los para maior aceitação do público. Murakami já chegou a criticar seus comportamentos no conto “Drive My Car”, (leia mais aqui). Quando vomita sua alma para fora, Murakami também mostra os esqueletos em seu armário. 

Seja por sua literatura, referências à cultura pop ou temas complexos em atividades corriqueiras, Murakami é um escritor incontornável justamente pela sua autenticidade, por utilizar sua primeira pessoa do singular com orgulho.

SERVIÇO
Livro: Primeira Pessoa do Singular (181 páginas)
Autor: Haruki Murakami 
Editora: Alfaguara
Preço R$ 59,90 (físico) e 37,90 (ebook)

*Estagiário, sob supervisão de Cristiano Castilho